O voto dos pobres se distancia do voto
da classe média em intensidade inédita.
Esse divórcio facilita a exploração
e a manipulação eleitoral
Julia Duailibi
A campanha presidencial deste ano não esquentou até agora, mas já produziu um fenômeno novíssimo: nunca, desde que o país voltou à democracia em 1985, houve um desgarramento tão profundo entre o voto dos pobres e o voto da classe média. Nas eleições presidenciais anteriores, o eleitorado de Luiz Inácio Lula da Silva sempre ficou eqüitativamente distribuído entre os pobres e a classe média. Em 1989, quando disputou a eleição com Fernando Collor, Lula tinha 15% dos votos da classe média, que compreende quem ganha entre 1.750 e 3.500 reais mensais. Entre o eleitorado mais pobre, com renda familiar de até 1.750 reais, Lula tinha 14% das intenções de voto. A diferença, portanto, era de apenas 1 ponto porcentual. Na eleição seguinte, a diferença ficou em 3 pontos porcentuais. Desta vez, num movimento inédito, o fosso ampliou-se drasticamente, chegando a 16 pontos porcentuais (veja o quadro). Quando se comparam as intenções de voto da classe média com as de um grupo menos favorecido, formado por famílias que ganham até 700 reais por mês, a diferença aumenta ainda mais, saltando para 20 pontos porcentuais.
A questão que intriga especialistas é a seguinte: por que as aspirações dos mais pobres e as da classe média estão separadas por tamanho abismo? O descompasso é ainda mais intrigante porque contraria um velho mito estabelecido na política brasileira: o de que, para ser eleito, um presidente tem de convencer primeiro os chamados formadores de opinião – a parcela mais rica e esclarecida da população, dentro da qual se situa a classe média –, que funcionariam, então, como caixa de ressonância para atingir o coração do eleitorado mais pobre. O fosso que separa pobres e remediados mostra que, pelo menos desta vez, isso não está acontecendo. "Essa máxima não pode ser tomada como lei. Cada eleição reflete um momento. E até agora as pesquisas indicam que isso não está acontecendo", constata Paulo Fábio Dantas Neto, professor de ciência política da Universidade Federal da Bahia. Por quê? Por que a classe média parece ter perdido sua suposta influência sobre o eleitorado mais pobre? Estaria o Brasil reeditando o anacronismo da luta de classes em pleno alvorecer do século XXI?
Ag. Folha
Getúlio, o pai dos pobres: ele também provocou uma divisão entre as classes
A resposta a esse fenômeno não é simples nem única. A maioria dos especialistas ouvidos por VEJA tem uma explicação bastante pragmática para a diferença entre o comportamento da classe média e o dos pobres – a questão econômica, como sempre. Os pobres dão sinais de que estão satisfeitos com as políticas distributivas emergenciais do governo, com destaque para o Bolsa Família, que já atinge mais de 11 milhões de famílias com renda de até 120 reais per capita. Além disso, a renda dos mais pobres subiu no governo Lula. Só nos últimos dois anos, a participação de quem ganha de um a dois salários mínimos no total da massa de renda foi de 7,1% para 8,4%. Como a maneira pela qual as pessoas ganham a vida molda sua visão do mundo, o alívio dado pelos repasses do governo acabou colocando em seus olhos uma lente muito favorável a Lula. Pela mesma razão, ao ver seu bolso se esvaziar, a classe média desencantou-se de Lula. O encolhimento da renda dos brasileiros de classe média no primeiro ano de Lula só é comparável ao confisco da poupança no governo de Collor. "A classe média está com uma visão muito crítica de Lula. Não tem mais aquele humor que foi decisivo na eleição de Lula há quatro anos", afirma o cientista político Ricardo Caldas, da Universidade de Brasília (UnB).
Estima-se, a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que a renda da classe média pode ter caído mais de 12% nos últimos quatro anos. Até mesmo em tamanho a classe média está se reduzindo. Em 1980, um em cada três trabalhadores urbanos era classificado como pertencente à classe média. Hoje, com a renda nacional per capita praticamente estagnada, essa proporção é menor. Calcula-se que a classe média atualmente seja formada por 15 milhões de famílias, centralizadas nos estados mais ricos e industrializados do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. É justamente nas regiões Sul e Sudeste que Lula está colhendo, por enquanto, seu pior desempenho eleitoral. "Alckmin é um candidato feito para agradar ao eleitorado médio. É médico, tem um discurso mais para o público de maior instrução. Diferente do Lula", diz José Luciano Dias, analista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos. Ainda assim, mesmo que boa parte da classe média tenha fugido de Lula, ela ainda se divide igualmente entre o petista e o tucano Alckmin.
Além do aspecto econômico, os especialistas acham que os escândalos de corrupção também podem ter contribuído para aumentar o abismo entre classe média e pobres. Faz parte daquelas verdades eleitorais nunca completamente comprovadas que a classe média seja mais sensível às denúncias de corrupção. O fato é que boa parte da classe média, que antes apoiava Lula e até o auxiliava a se projetar nas camadas ainda ricas da população, agora foi buscar outras opções eleitorais. O eleitorado mais pobre, no entanto, parece não ter se sensibilizado com o advento dos mensaleiros, dólares na cueca, Land Rover e outras adjacências da podridão. "Se o eleitor pobre tiver de escolher entre o arroz mais barato e a lisura do governo, pode ter certeza de que ele vai ficar com o arroz mais barato", afirma o cientista político Rubens Figueiredo, diretor do Cepac, instituto especializado em marketing político e análise de opinião pública.
Até agora, havia uma relativa homogeneidade entre o comportamento dos diferentes estratos de renda com relação aos líderes nas pesquisas, o que fazia com que o resultado eleitoral em todo o país seguisse um padrão: o vencedor ganhava com o apoio dos pobres, que votavam da mesma forma que a classe média. Foi o que ocorreu, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2002. Lula ficou com 45% dos eleitores pobres, 50% da classe média e 48% dos considerados ricos. Mesmo na eleição de 1989, quando era visto como um candidato da extrema esquerda, Lula conquistou a simpatia de eleitores de rendas distintas com a mesma intensidade. O que mudou de lá para cá? "Não é o mesmo Lula", decreta Rogério Schmitt, cientista político da Tendências Consultoria. "Agora, o voto não é com base no que ele diz, mas, sim, com base no que ele fez." Lula, além de ter melhorado a vida dos menos favorecidos, conseguiu encenar como nenhum outro presidente recente o papel de pai dos pobres, figurino celebrizado por Getúlio Vargas.
Os interesses da classe média e dos pobres nem sempre andaram no mesmo sentido na história recente do país. No último governo de Getúlio Vargas (1951-1954), frações mais elevadas da classe média, ameaçadas pelo aumento da participação popular, juntaram-se à União Democrática Nacional (UDN) para tramar um golpe contra o pai dos pobres. Dez anos depois, as mudanças promovidas pelo presidente João Goulart (1961-1964), como as reformas de base, opuseram os mais pobres aos setores médios e ricos, influenciados pelo discurso conservador que resultou no golpe militar de 1964. O que não se sabe, por falta de pesquisas detalhadas, é se essa dicotomia entre as classes naquele período histórico tinha repercussão tão clara no aspecto eleitoral. Agora, pela primeira vez, as pesquisas constataram o fosso – e sua largura surpreende.
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