Paulo Mente*
O presidente Lula surpreendeu ao afirmar ser obrigação do Estado a cobertura das insuficiências financeiras trazidas à Previdência pela Constituição de 1988. Uma atitude firme que confronta, em parte, com a linha econômica neoliberal. Segundo Lula, reformas previdenciárias têm ciclos de 20 a 25 anos. Os seguros sociais latino-americanos foram criados sob regimes contributivos mutuais, à margem do sistema tributário, mas nunca dispensaram a contrapartida financeira do Estado. No regime orçamentário de repartição, esses modelos sempre ficaram dependentes da predominância da massa de contribuintes sobre a massa beneficiária.
Nos últimos 30 anos, a massa de contribuintes sofreu alterações negativas, pela redução da natalidade e pelas mutações nos níveis de desemprego e informalidade na economia, enquanto a massa beneficiária avançou. Avançou em menor escala, em que apenas a expectativa de vida dos idosos aumentou e aceleradamente, como no Brasil, onde também houve a expansão protecionista a extratos da população anteriormente não beneficiados.
A crise, todavia, não é exclusividade brasileira, tem afetado a todos os países latino-americanos. As experiências e resultados obtidos permitem reflexões mais profundas e o aprimoramento dos conceitos sobre seguros sociais. Parece consenso que o regime de repartição deva visar apenas à proteção básica, num nível máximo condizente com o estágio de desenvolvimento social de cada nação. Este sim, por conta do Estado.
O Chile, precursor das reformas, foi radical ao retirar o regime da Previdência retributiva da administração do Estado, transferindo-o para as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), com adesão compulsória. Depois de 25 anos, o regime básico, em mãos do Estado, continua importante, cobrindo metade dos idosos, e o sistema privado, financeiramente forte e equilibrado, tem representatividade limitada.
A Argentina, que há 30 anos viveu uma crise com os sistemas mutuais, com aposentadorias precoces e achatamento de benefícios, também criou as Administradoras de Fundos de Pensão (AFJP, na sigla do país) privadas. Mas, ao contrário do Chile, manteve no Estado um regime contributivo sob o regime de repartição, como opção de vínculo dos trabalhadores. Passados pouco mais de dez anos, o regime público tem mais de 3,1 milhões de aposentados e pensionistas, com renda mensal média de US$ 150. Os ativos contribuintes são 740 mil para uma população três vezes maior de potenciais beneficiários. O sistema privado tem apenas 3,8 milhões de filiados, entre titulares e dependentes.
Salvo pelo volume, o quadro brasileiro é semelhante. A seguridade brasileira tem quatro regimes, um privado e três deles sob administração do Estado. Destes três, um é sustentado pela estrutura tributária, garantindo benefícios aos funcionários públicos anteriores à reforma. Outro regime, sustentado por contribuições sociais, é o regime geral dos mais de 39 milhões filiados da Previdência Social, com benefícios variados. Esse regime tem 17,5 milhões de beneficiários com rendas vitalícias, cuja média mensal é da ordem de US$ 230. Mas há benefícios superiores a US$ 2 mil mensais.
O terceiro regime, que muitos consideram integrado ao segundo, tecnicamente é o mais importante sob o conceito de seguro social universalizado. É o que garante renda previdenciária mínima aos que não contribuíram suficientemente, e que inclui os trabalhadores rurais desde a Constituição de 1988. Esse regime deveria ser sustentado pela arrecadação tributária, mas é coberto com o dinheiro, já insuficiente, pago pelos contribuintes do regime geral. A maior parte do déficit previdenciário é gerada nesse segmento e é crescente. Foi justamente essa a obrigação que o presidente Lula resgatou como do Estado.
As experiências latino-americanas e as economias desenvolvidas recomendam limitar o teto da obrigação do Estado a um porcentual compatível com renda média da população, repassando tudo o mais ao sistema privado, sem exceções. O Brasil começou a trilhar esse caminho, mas com as dificuldades de um esquema de transição. Sem dúvida, as reformas passadas foram amenas com relação à fixação de tetos, no regime geral e no regime do funcionalismo, e, nesse aspecto, não há como deixar de revê-las, talvez num ciclo mais curto que aquele visualizado por Lula. *Paulo Mente, economista, ex-presidente da Abrapp, é diretor da Assistants - Consultoria Atuarial
*Paulo Mente, economista, ex-presidente da Abrapp, é diretor da Assitants - Consultoria Atuarial