A nossa miséria já foi descrita pelos melhores poetas. Não faltam versos para exprimir a morte de milhões de brasileiros por extrema carência: "E se somos Severinos,/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/ é que a morte severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nascida)". A seca poesia de João Cabral de Melo Neto, emoldurando a miséria nordestina, escrita em 1955 e cantada, em 1966, no Tuca, em São Paulo, acaba de receber uma versão de artistas contemporâneos reunidos no palanque político. O tom agora não é de choro, mas de vivas. E a dor pelo desaparecimento físico de compatriotas cede lugar à vibração pela morte moral da Nação. Entenda-se por morte moral depravação da alma, degradação de costumes, banalização da corrupção, glorificação da imoralidade, Sodoma e Gomorra.
O velório da morte moral começou há um bom tempo, ganhou até o enterro ensaiado de um Severino, o Cavalcanti, que renunciou à presidência da Câmara, acusado de maracutaia, e causou comoção na última temporada artística de loas ao governo, quando se ouviu a cantilena "política se faz com mãos sujas", ou seja, bandalheira existe em toda parte. Paulo Betti, Wagner Tiso e Luiz Carlos Barreto, da banda que vê a corrupção com naturalidade, envergaram a bandeira maquiavélica dos fins justificando os meios, levando ao pé da letra a filosofia que Horácio defendeu para os antigos latinos: "Poetis et pictoribus omnia licet (aos poetas e pintores tudo é permitido)." O próprio presidente da República tem sido o mais árduo defensor da idéia de que política e corrupção são irmãs siamesas. É o que se infere quando diz que "política a gente faz com o que a gente tem, e não com o que a gente quer". Se a "gente" tem corrupção desbragada, que se monte o cardápio político com ela. Se a "gente" está cercada de lama, que a usemos para pavimentar os caminhos.
A inquietação vem na seqüência: o que fazer com a "sofisticada organização criminosa" de 40 pessoas envolvidas com o mensalão e identificada pelo procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza? Ora, esperar pelo esquecimento. A memória do povo é fraca, dizia o pouco recomendável Hitler, em Minha Luta. Se for o caso, basta menosprezar os escândalos em série, como parece ser a sugestão da professora Marilena Chauí, para quem o governo "não fez concessões demais" no aspecto ético. Ela quis dizer que as concessões foram poucas. Talvez não concorde com a idéia de que uma pessoa 99% honesta é 100% desonesta, por não haver honestidade relativa. Especialista em Benedictus de Spinoza, autor de um clássico estudo sobre Ética, Marilena Chauí certamente tem outra leitura para esta lição do velho mestre: "O homem não governa nada com mais dificuldade do que sua língua." Talvez esta dificuldade explique a torrente de idéias tortas que se multiplicam na mídia para argumentar que o bolo da corrupção é provado por todos os políticos. Sob essa ética providencial, larápios e patrocinadores têm passaporte para entrar no céu, sem mesmo um final de semana no purgatório, desde que peçam desculpas.
Para piorar o estado de depravação da alma nacional, volta-se a culpar a imprensa, ou melhor, os "deformadores de opinião", que agem para ressurgir o golpismo. Não é galhofa, é verdade. O assessor especial da Presidência e, atentem, coordenador do programa de governo para um eventual segundo mandato de Lula, Marco Aurélio Garcia, acredita piamente que haja forças tramando um golpe. Ele vê canhões, bazucas e metralhadoras fuzilando com tiros de letras o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios. Para arrematar o disparate Lula pede que a mídia seja fiel à verdade, ensinando que a imprensa tem compromisso com a imparcialidade. Então, "deformadores de opinião", analisem a proposta: esqueçam mensaleiros, sanguessugas, vampiros, gafanhotos, quadrilhas, fraudes, caixa 2, receita tributária de 37,7% do PIB, burocracia massacrante, juros altos, excessivos gastos públicos, mordomias, programas recheados de assistencialismo puro, desemprego. Vamos rezar pela cartilha do país das maravilhas, que passa pelo maior surto de desenvolvimento desde que Pedro Álvares Cabral entregou os espelhinhos que encantaram os silvícolas tupiniquins ao aportar no litoral da Bahia e plantar a semente da "corrupção" que infesta a seara política.
Aqui reside o perigo. O ideário de que a sujeira faz parte do DNA do País, atravessando séculos e fincando estacas na atualidade, é um sofisma para defender a inserção de todos no ranking da putrefação. Por ele, todos são sebosos nas páginas da cultura política. Transferem-se à política as marcas da imoralidade, com respingos sobre a própria comunidade nacional. Por repetição, a retórica acabará impregnando a sociedade, induzida a se julgar responsável em parte pela lama que escorre nas esferas dos Poderes. Joga-se, mais uma vez, com o dado falsificado: o povo tem os representantes que merece. E de viés em viés se chega ao absurdo de confundir o direito à igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade - nos termos do artigo 5º da Constituição - com a ilação de que todos os brasileiros são iguais nas atitudes.
Esse é o enredo da epopéia da morte cívica a que o País assiste. O capital ético, agora medido por cifrões, estará negociando a compra de ingressos nas lojas de conveniências que se espalham pelos quadrantes. Do fundo do caixão se eleva a figura de um Severino, o Cavalcanti, o renunciante. Resplandecerá, como outros, no acender de luzes da nova legislatura. Nota ao fim do velório: a morte moral do País opera milagres. Faz até ressuscitar defuntos.