ALI KAMEL Outro dia, fui acusado de dar publicidade no meu livro “Não somos racistas” aos estudos segundo os quais 87% dos brasileiros têm mais do que 10% de ancestralidade genômica africana, e de omitir outras pesquisas que indicariam outra realidade. O crítico Marcelo Leite citou o estudo que mostra que, no Brasil, 98% dos marcadores genéticos dos homens brancos, herdados do pai, têm origem européia, enquanto os marcadores genéticos herdados da mãe têm origens mais bem distribuídas: 39%, européia, 33%, indígena e 28%, africana. A partir desse dado, ele fez uma ilação que, se verdadeira, dói na alma: “A tradução é clara: os senhores portugueses e seus descendentes, indubitavelmente brancos, eram os machos dominantes e tinham filhos com as poucas mulheres brancas, mas também se saciavam com as escravas índias e negras, gerando a multidão de pardos na pele e no DNA, nem sempre os dois juntos, que povoou e povoa, ainda hoje, o Brasil. Isso, obviamente, nada tem a ver com racismo (ao menos para quem está pronto a enxergar como congraçamento o que outros preferem ver como violência).” Seríamos, então, todos filhos do e s t u p ro ? Em primeiro lugar, não omiti nada, porque são pesquisas que dizem coisas diferentes. A ancestralidade genômica analisa um conjunto de características herdadas de pai e mãe, através das gerações, que determina o grau de procedência geográfica daquele patrimônio genético. Os marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados apenas por homens do pai, e os marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados por homens e mulheres da mãe, mas transmitidos à geração seguinte apenas pelas mulheres, falam apenas do fundador de uma determinada linhagem, que pode remontar a centenas de anos atrás: falam de apenas um só indivíduo.
Um exemplo claro: uma índia teve uma filha com um europeu há 500 anos. Este é o início de uma linhagem.
A filha dela herdou da mãe um DNA mitocondrial 100% indígena. Esta filha se casou com um europeu e toda a sua descendência, ao longo de 500 anos, fez a mesma coisa, gerações se casando sempre com europeus: hoje, a descendente daquela união, filha, neta, bisneta e tataraneta, pelos dois lados, de europeus, será na aparência totalmente européia, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente européia, mas o seu DNA mitocondrial ainda hoje será 100% indígena.
O mesmo acontece com os marcadores genéticos do cromossomo Y. Se o fundador da linhagem, há 500 anos, era europeu, não importa que todos depois tenham se casado com índios ao longo da história: hoje o descendente daquela união há 500 anos será um índio, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente ameríndia, mas o seu marcador genético do cromossomo Y ainda assim será 100% de origem européia.
Portanto, a conclusão é mesmo clara: a vasta maioria dos homens brancos no Brasil descende de um fundador de linhagem de origem européia, e, por isso, tem marcadores genéticos do cromossomo Y 100% de origem européia.
Mas isso não implica necessariamente que todos os homens daquela linhagem, ao longo de anos e anos, tenham sido brancos: quer dizer apenas que o fundador era europeu.
Entre o fundador e o indivíduo de hoje, podem ter existido gerações das mais diversas misturas. E o instrumento que mostra o grau dessa mestiçagem é a pesquisa de ancestralidade genômica, e não a pesquisa sobre marcadores genéticos do cromossomo Y e marcadores genéticos do DNA mitocondrial.
Resta analisar a hipótese dantesca: somos filhos do estupro? É preciso desconhecer a nossa história demográfica para responder positivamente.
Nos primeiros 150 anos do Brasil, havia escassez de mulheres brancas. Para o português, as mulheres indígenas foram quase a única opção para que constituísse família e povoasse a terra. Houve violência? Provavelmente, mas viajantes e cronistas de época dão conta de que essa não era a regra. Em 1551, o padre Manoel da Nóbrega escrevia sobre Pernambuco: “Os mais aqui tinham índia de muito tempo de que tinham filhos e tinham por grande infâmia casarem com elas. Agora se vão casando, e tomando vida de bom estado.” Gilberto Freyre escreve: “Zacarias Wagner observaria no século XVII que entre as filhas das caboclas iam buscar esposas legítimas muitos portugueses, mesmos dos mais ricos, e até ‘alguns neerlandeses abrasados de paixão’.” Em 1755, uma lei promulgada pelo Marquês de Pombal estimulava ativamente a união entre portugueses e índias.
E as negras? É evidente que o português, para usar um termo de Leite, sempre se saciou delas das mais diversas formas, perversas ou não.
Mas terá havido uniões estáveis? A historiografia diz que sim. “E, pela mesma razão, não há mineiro que possa viver sem nenhuma negra Mina, dizendo que só com ela tem fortuna”, dizia, referindo-se a Minas Gerais, Luiz Vaia Monteiro, governador do Rio de Janeiro em 1730, acrescentando que elas eram elevadas à condição de “donas de casa”.
É verdade que o casamento não foi a regra, porque as leis brasileiras e portuguesas, ao facilitarem o perfilhamento de filhos ilegítimos, estimulavam o concubinato ou as relações efêmeras.
Mas a união entre negros e brancos no Brasil é uma prática que percorre os séculos.
Essa é a nossa beleza.
O que acabo de descrever está em linha com os números que Leite cita, mas as conclusões dele são descabidas.
Os brancos brasileiros hoje têm mesmo altíssima possibilidade de ter marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados do pai, de origem européia, e marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados da mãe, com origem mais bem distribuída: africana, ameríndia e européia. Esses dados, porém, mostram apenas o começo da história, quando os primeiros brancos se deitaram com as primeiras índias, com as primeiras negras, com as primeiras européias que aqui chegaram.
Pode ter havido violência, pode ter havido paixão. Quem vai saber? O que sabemos com certeza é que esses números nada dizem sobre a história de cada indivíduo, das gerações que os precederam, dos amores dos quais são hoje o resultado. Dizem respeito apenas ao casal original. E só. O que conta a história completa dos indivíduos, através das gerações, é o estudo que divulgo no livro: e este diz que 87% dos brasileiros têm mais de 10% de ancestralidade africana.
Depois do casal original, tomamos gosto pela mistura e nos tornamos avessos a interdições raciais. Somos todos misturados. Não somos racistas.
ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br.
P.S.: A íntegra deste texto, abordando outros pontos da resenha de Marcelo Leite, pode ser lida em w w w. o g l o b o. c o m . b r / o p i n i a o.
Entrevista:O Estado inteligente
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