O caso do hino que encolheu, a exceção
americana, nem tão excepcional, e o
estigma da Alemanha
A nação brasileira foi condenada a assistir impotente, durante a Copa
da Alemanha, ao decepamento de seu Hino Nacional. Antes dos jogos,
naquele momento entre todos solene, mais patriótico do que parada do
Sete de Setembro, em que o time se alinha e ressoa, nos estádios, a
gravação do hino, não adianta ter decorado aquela letra inteira, ida
e volta, tanto a parte do "Ouviram do Ipiranga" quanto a do "Deitado
eternamente": mal começa e a gravação abruptamente estanca, engasgada
no primeiro "Ó pátria amada, idolatrada, salve!, salve!". Os
econômicos alemães abateram quatro quintos do hino brasileiro. Dos 52
versos que o compõem, só deram vez nos estádios aos onze primeiros.
Quem manda, parecem estar dizendo, ter um hino tão comprido?
Os jogos da seleção são o grande momento do Hino Nacional. Em outros
países esse momento pode ser o de uma guerra, uma ameaça à
nacionalidade, uma posse de presidente da República, um aniversário
de rei ou rainha. No Brasil, é o da entrada em campo da seleção
canarinho. A preceder o pontapé inicial, vem aquela chuva de "raios
fúlgidos", "penhor dessa igualdade", "raio vívido", "impávido
colosso", coisas que não se sabe bem o que querem dizer, mas que se
presume tenham um importante e grave significado. E há ainda o
"florão da América", o "lábaro estrelado", a "clava forte", coisas
que devem ser de incomparável magnificência, ou não mereceriam
palavras tão grandiosas. Canta-se o Hino Nacional como se reza uma
oração em latim: não se sabe o que quer dizer, mas por isso mesmo se
intui que a mensagem chegará mais depressa e mais vigorosa a Aquele
que Sabe Tudo. Ou como se entoam palavras misteriosas, abracadabra,
sim salabim, capazes de produzir efeitos miraculosos. Vem o alemão e
reduz ao mínimo os poderes mágicos do hino. Não será por outra razão
que quando um Ronaldo desencanta o outro murcha, quando Kaká se
encontra Adriano se perde, e pela primeira vez na história das Copas
o goleiro é grande destaque no time nacional.
A nação americana é, como sempre, a grande ausente do frenesi que
sacode o planeta por ocasião dos Mundiais de futebol. Há americanos
influentes que têm ódio daquilo que chamam de soccer. Jack Kemp, um
antigo jogador do esporte de trogloditas a que seus compatriotas
chamam de futebol, depois dono de uma carreira política que o
conduziu ao gabinete do primeiro Bush e à candidatura a vice-
presidente em 1996 (na chapa de Bob Dole, que perdeu para Bill
Clinton), opôs-se a que a Copa de 1994 fosse realizada nos Estados
Unidos, sob o argumento de que, enquanto o futebol americano é um
esporte "democrático e capitalista", o soccer seria "europeu e
socialista". Outros americanos, mais condescendentes, acham que o
soccer é um esporte para ser praticado por meninas na escola.
O enigma da exceção americana diante da paixão mundial pelo futebol
(o verdadeiro, o "europeu e socialista") é ressaltado a cada quatro
anos. Os EUA tiveram sucesso em impor seu gosto ao resto do mundo em
setores que vão do cinema e do rock ao fast-food. Falharam em
exportar o beisebol, a não ser para alguns poucos países, e o seu
futebol, o "democrático e capitalista". O mundo, em compensação,
falhou em convertê-los ao soccer. A revista inglesa The Economist
lembra, no entanto, que os EUA são "mais individualistas, mais
religiosos, mais nacionalistas, mais antigoverno e mais entusiasmados
pelo uso da força do que outros países". Nem só o futebol
caracterizaria seu excepcionalismo.
A nação alemã, a cada evento em que assume papel central perante o
mundo, ao mesmo tempo se desencontra e se encontra com o estigma do
nazismo. O desencontro decorre de apresentar-se tão diferente do que
foi – aberta, amiga, democrática. No time que a defende na Copa há
até um negro, além de dois destacados atacantes nascidos na Polônia.
Mas, exatamente por se apresentar como é, faz ressurgir o fantasma do
que foi. Como é que pôde acontecer? – eis a pergunta inevitável. Como
é que um povo desses, com contribuições à humanidade que vão das
melhores cervejas à melhor filosofia, da aspirina à grande música,
pôde cair na loucura assassina do nazismo? A pergunta é velha,
recorrente e inevitável.
Ao reunificar-se, em 1989, a Alemanha parecia ter chegado ao fim da
purgação de seus pecados. Antes disso, o "milagre econômico" do pós-
guerra havia comprovado a vitalidade do povo alemão. As conquistas
das Copas de 1954, 1974 e 1990 exibiram ao mundo um país de novo
confiante e com vontade de vencer. Cada um desses feitos contribuiu
com uma parcela para conferir à Alemanha a cara de país "normal". Mas
cada um teve também o efeito de trazer de volta a memória do passado.
É assim nesta Copa. Olha-se para aquela gente, os belos parques, as
cidades e os estádios em festa, e a pergunta é a de sempre: "Como
pôde acontecer?". Já faz mais de sessenta anos que Hitler e o nazismo
saíram de cena. Nem outros sessenta, talvez, serão suficientes para
que se olhe para a Alemanha e se deixe de pensar neles.