A filósofa diz que Lula age como um
tirano, afirma que Alckmin foi escolhido
para perder e denuncia o oportunismo
de intelectuais de esquerda
Marcelo Carneiro
"Não há nada mais flexível do que a espinha de um político brasileiro"
Professora dos departamentos de filosofia da USP e da Unicamp, Maria
Sylvia de Carvalho Franco passou os últimos quarenta anos de vida
acadêmica nadando contra a corrente. Durante o regime militar, entre
optar pelo exílio – como fizeram muitos de seus colegas que militavam
em organizações clandestinas – e manter aberta a cátedra da USP mesmo
sob a vigilância da polícia, a decana da faculdade de filosofia
preferiu a segunda alternativa. Dava aulas para até 100 estudantes,
alguns deles investigadores policiais infiltrados. Começava ali um
histórico de polêmicas com boa parte da intelectualidade brasileira,
à direita e à esquerda. Seus trabalhos de pesquisa, em especial o
clássico Homens Livres na Ordem Escravocrata, de 1969, conseguiram
desagradar a marxistas e liberais. Hoje, a professora ainda cultiva o
destemor ao refletir sobre o oportunismo na vida política – tanto dos
partidos quanto dos intelectuais, em especial os de esquerda.
Veja – Apesar de todas as denúncias contra o seu governo, e com o PT
caminhando para um encolhimento nas urnas, o presidente Lula continua
com alta popularidade. Como explicar esse fenômeno?
Maria Sylvia – Primeiro, isso se deu graças a uma política populista
desenfreada e ao uso desmedido do dinheiro público e da estrutura
governamental para propagandear essa política. Depois, ocorreu porque
Lula é um sobrevivente, exatamente como na definição do escritor
Elias Canetti (búlgaro, prêmio Nobel de Literatura em 1981 e autor do
livro Massa e Poder). Para Canetti, os homens que têm uma posição
carismática, e de poder, terminam por criar um vazio em torno de si.
Exemplo disso é a capacidade que Lula tem de se livrar até dos
auxiliares mais próximos, quando isso é necessário. Ele sabe que o
perigo o cerca de todos os lados. Atento a isso, criou um deserto à
sua volta. Tem mensalão, ministro que pede demissão, outro que é
acusado de corrupção, um monte de gente do PT envolvida – mas, para
cada um desses problemas, ele inventa uma desculpa. Ora diz que foi
traído, ora que não sabia de nada. Ou, então, se livra sem pudores
dos auxiliares mais próximos. Veja o (ex-ministro da Fazenda)
Palocci. Lula o defendeu até o último minuto. Quando ficou claro que
o ministro estava comprometido, ele simplesmente o tirou. O mesmo
aconteceu com o José Dirceu. Esse é o destino do tirano: ele acaba se
isolando porque, para conseguir chegar ao poder, elimina qualquer
tipo de relação, seja ela política ou social, de amizade ou de
confiança. Tudo isso em proveito de si próprio.
Veja – Esse seria o traço mais forte da personalidade política do
presidente?
Maria Sylvia – Lula é um fenômeno que guarda peculiaridades. Sua
característica mais evidente seria a esperteza. Ele tem um certo tipo
de inteligência que pega o momento oportuno e segue nesse rumo. Hoje
eu não tenho mais dúvida de que, mesmo no período em que era líder
sindical, seu projeto era uma mudança de classe. A mudança dele – já
que, pela natureza do capitalismo, é impossível a mudança estrutural
de toda a classe operária. Ocorre que, quando indivíduos isolados
transpõem essa barreira, perdem a determinação da classe da qual
saíram e assumem a determinação de outra classe. Essa, aliás, é uma
análise marxista. Diz-se que, desde o período sindical, Lula fazia
alianças com a burguesia. Era agressivo no palanque e conciliador na
mesa de negociação com os empresários. O marco disso é o momento em
que ele conseguiu se eleger. Houve uma mudança até na sua aparência
física. Hoje seria impossível distinguir Lula em uma reunião de
empresários – a não ser pelo fato de que ele talvez estaria mais bem
vestido. Aquele alfaiate dele é muito bom. Só não conseguiu mudar
tudo, como se vê pelas gafes e pelos erros de português que comete.
Veja – Mas os discursos o ajudam a tornar-se mais popular.
Maria Sylvia – Não sei se o ajudam, mas o fato é que isso não deveria
ocorrer. Lula teve trinta anos para se cultivar. Ou ele não fez isso
porque é muito preguiçoso ou porque explora essa falta de cultura
como mais uma faceta da sua atitude esperta diante do mundo. Ou é
preguiça ou é canalhice. Na verdade, o bom português é o mínimo que
se exige de um presidente da República. Não aceito o argumento de
alguns lingüistas de que a língua falada é dinâmica. Existe uma
gramática, com significados definidos. São estruturas que têm de ser
respeitadas, senão a língua desaparece, vira um dialeto incompreensível.
Veja – A história da democracia no Brasil tem episódios de avanços e
retrocessos. Qual a explicação para o ressurgimento de um fenômeno
populista como o lulismo neste momento?
Maria Sylvia – O problema está na forma como o poder republicano se
institucionalizou no Brasil. A lógica da Presidência é imperial, de
concentração de poderes. Mas há também os defensores dos interesses
regionais, que têm sua sede no Parlamento. A função deles é garantir
uma parte dos recursos que são sugados para os cofres do governo
federal. Nessa queda-de-braço, o presidente da República dificilmente
contará com um bloco muito fiel entre os deputados e senadores. Em
decorrência disso, passa a exercer pressão sobre o Congresso de duas
maneiras: fazendo a interlocução direta com as massas, e virando o
pai dos pobres, ou desviando dinheiro público para encher o bolso de
parlamentares aliados e, assim, garantir apoio. É Bolsa Família e
mensalão.
Veja – Em que medida a tibieza da oposição ajudou o presidente Lula a
passar ao largo das denúncias e dar continuidade a esse projeto?
Maria Sylvia – A blindagem de Lula vem, em certa medida, dos
interesses políticos envolvidos. Por que o PSDB se cala diante das
denúncias? Arthur Virgílio (senador do PSDB do Amazonas), que vinha
fazendo um grande ataque, no outro dia recua. A mesma coisa acontece
com as CPIs. A CPI dos Correios criou várias oportunidades para que
se pedisse o impeachment de Lula – por exemplo, quando foram
descobertos pagamentos de campanhas eleitorais em contas no exterior.
Isso não aconteceu porque os tucanos têm telhado de vidro – um pouco
mais sólido, é verdade. Se nada de significativo apareceu contra os
tucanos até agora, foi apenas porque eles têm mais experiência no
poder, não são afoitos como esse pessoal do PT, que se juntou com
criminosos ligados a esquemas de lixo e a bingos.
Veja – Na sua opinião, quais as chances de o candidato tucano,
Geraldo Alckmin, vencer a eleição?
Maria Sylvia – Eu sempre imaginei que havia algo por trás dessa
escolha de Alckmin. Por que a opção por uma pessoa tão inexpressiva –
sem carisma, sem ligações importantes em lugar nenhum – para
enfrentar um homem como Lula? Hoje está na cara. Alckmin foi
escolhido para perder.
Veja – Como assim?
Maria Sylvia – Aécio (Neves, governador de Minas Gerais) e Tasso
(Jereissati, presidente do PSDB) escolheram alguém para ser queimado.
O projeto do PSDB é para 2010. As chances de Alckmin são muito
pequenas porque, inclusive, o tucanato não vai se empenhar. Diz-se
que Lula não tem herdeiros, daí o "Lulécio", o Lula com Aécio. Meu
marido (o filósofo Roberto Romano) tem uma expressão muito adequada.
Afirma que os tucanos são primos do PT e que, no futuro, vão se
reunir em família e dividir o bolo. Acho que haverá um ajuntamento
entre Lula e esses dirigentes mais novos, como Aécio. O único
problema é o PMDB, um partido muito forte e oligárquico. O Brasil é
assim: de um lado, a força do governo federal; de outro, o poder das
oligarquias regionais. E quem congrega essas oligarquias é o PMDB.
Veja – A senhora já disse que tanto Lula como Geraldo Alckmin têm
traços autoritários. Quais os exemplos de autoritarismo dos dois
candidatos?
Maria Sylvia – Em Lula, há exemplos todo dia, como nessa frase de que
é fácil governar para pobre. Porque, segundo ele, pobre não protesta
– então, é fácil de dominar. Em Alckmin, o exemplo fundamental ainda
é sua atitude na pré-candidatura. Ele disse: "Eu quero ser candidato,
e é para já" – apesar de todas as indicações de que ele não ganharia
a eleição.
Veja – A senhora acredita que, em caso de vitória por larga margem de
votos no primeiro turno, Lula se sentiria tentado a governar
desprezando as instituições e dialogando diretamente com as massas,
como sugeriu o ex-petista e também candidato a presidente, Cristovam
Buarque?
Maria Sylvia – Acho possível, mas não temos muito que fazer, só
rezar. Essa reeleição do Lula é perigosa. Há um vazio político muito
grande. Toda uma geração está deixando a vida política e não há uma
nova para assumir esse posto. Entre os partidos, só vejo o PV, do
Fernando Gabeira, e o PSOL.
Veja – Mas o PSOL, além de uma visão de mundo ultrapassada, traz
alguns vícios idênticos aos do PT.
Maria Sylvia – Sei disso. Sei que há também demagogia e oportunismo,
todos os males da política brasileira. Mas é preciso que um partido
de oposição sobreviva. O PMDB não vai fazer oposição, é visceralmente
conciliador. O PSDB está mostrando a cara: concilia também, e muito.
O PFL é outro conciliador. Quando se trata de repartir o poder, eles
estão todos juntos. Não há nada mais flexível do que a espinha de um
político brasileiro.
Veja – A senhora é conhecida por distribuir críticas a pensadores
tanto do PT quanto do PSDB. Há alguma diferença entre um intelectual
petista e um tucano?
Maria Sylvia – No PT, há dois tipos de intelectual. O primeiro é
correto, mas tem um fanatismo exacerbado. São pessoas que não tiram
vantagem nenhuma de apoiar o PT, às vezes dão de si e do próprio
bolso, sem receber nada em troca. Mas são capazes de cortar relações
com você só porque você faz críticas ao PT. É um apego ideológico, e
ideologia emburrece. O segundo tipo é o intelectual de um oportunismo
atroz, como Marilena Chaui. Uma pessoa com a formação dela não pode
dizer que, quando Lula abre a boca, o mundo se ilumina. É uma
professora universitária que diz que o mundo é iluminado por alguém
que faz a apologia da ignorância, que é capaz de dizer "minha mãe
nasceu analfabeta". Alguns membros do PT fazem essa apologia.
Veja – E o intelectual tucano?
Maria Sylvia – É cultivado, até mais do que os do PT, mas tem uma
certa desvinculação da estrutura partidária. Os tucanos são mais
individualistas e têm uma capacidade maior de ajustamento às
circunstâncias.
Veja – Qual a origem desses dois grupos?
Maria Sylvia – Os dois grupos são formados por intelectuais
originados da ortodoxia marxista. Houve um bom período de domínio
hegemônico dessa corrente na universidade. Os partidos comunistas
mais ortodoxos sustentavam grupos universitários de poder,
controlando cargos acadêmicos, formação de colegiados e até
publicações. Nem precisava ser membro de algum desses partidos para
ter essa sustentação, bastava ser uma linha auxiliar, um
simpatizante. Essa instrumentalização hoje se mantém, ainda que com
menor vigor. Esses monopólios são difíceis de ser quebrados.
Veja – Para quem olha de fora, parece que a intelectualidade marxista
continua bem forte nas universidades brasileiras.
Maria Sylvia – Sim, mas o fato é que já foi bem mais dominante. Além
da ortodoxia marxista, outra corrente acadêmica muito forte era
aquela com raízes românticas, representada principalmente pelo Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982). Raízes do Brasil, por exemplo, é um
livro de fundamentos românticos.
Veja – Quais as conseqüências da predominância dessas duas correntes
na vida acadêmica?
Maria Sylvia – Elas produziram grupos extremamente conservadores. Do
romantismo você não pode esperar outra coisa. É uma posição
pacificadora. Hoje em dia ninguém acredita no homem cordial do Sérgio
Buarque, em uma sociedade harmoniosa, mas essa idéia persiste e
passou pela antropologia americana, pela Igreja, pelas comunidades
eclesiais de base, pelas organizações não governamentais e deu origem
a um vocabulário próprio. Você, por exemplo, não pode mais falar
"favela", tem de falar "comunidade".
Veja – Seu livro Homens Livres na Ordem Escravocrata, lançado em
1969, hoje é um clássico. Mas levou dez anos para ser publicado. Qual
a razão da demora?
Maria Sylvia. – Ele foi resultado de uma tese de doutorado e, na
ocasião, era contra todas as interpretações correntes no Brasil.
Desagradava tanto aos ortodoxos marxistas quanto aos liberais. Essas
dificuldades do período inicial da minha carreira persistiram até não
faz muito tempo. Os estereótipos, as idéias feitas, principalmente
quando são propostos por intelectuais de importância, têm uma força
enorme.
Veja – Por quê?
Maria Sylvia – Porque são grupos de poder que se instalam e que têm
uma circulação interna de auto-sustentação muito grande. Em seus
trabalhos de pesquisa, as pessoas se citam reciprocamente, e
abundantemente. Se você procurar a literatura publicada imediatamente
depois do meu livro, não encontrará nenhuma citação. Isso só foi
ocorrer anos depois. A censura ideológica neste país é muito grande.