Com menos ênfase no sobrenatural e mais
investimento em técnicas de auto-ajuda,
a nova geração de pregadores evangélicos
multiplica o rebanho protestante e aumenta
a sua penetração na classe média
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Camila Pereira e Juliana Linhares
Valéria Gonçalves/AE![]() |
| REBANHO QUE CRESCE Evangélicos na Marcha para Jesus, evento que reuniu 3 milhões de pessoas em São Paulo em junho |
A informação foi divulgada pela primeira vez no último mês de maio, para perplexidade dos 320 bispos católicos reunidos na 44ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Indaiatuba, no interior de São Paulo: nas últimas décadas, a Igreja Católica brasileira perdeu nada menos do que 15 milhões de almas, segundo pesquisa de mobilidade religiosa feita pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). O trabalho, coordenado pela socióloga Sílvia Regina Fernandes, abrangeu cinqüenta municípios brasileiros, sendo 23 capitais, e foi realizado entre agosto e novembro de 2004. De acordo com o estudo, o primeiro motivo pelo qual o católico vem abandonando a doutrina é a discordância em relação aos seus princípios. O segundo é a sensação de não ser acolhido pela igreja e o terceiro é o fato de não ter encontrado nela apoio para os momentos difíceis. Os resultados da pesquisa do Ceris embutiam um desconcertante corolário: de que, de cada dez ex-católicos, sete se tornaram evangélicos. De 2000, ano do último censo, a 2003, o número de evangélicos brasileiros passou de 15% para quase 18% da população, conforme estudo inédito feito pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e coordenado pelo economista Marcelo Neri. Em valores absolutos, isso significa dizer que, em três anos, quase 6 milhões de brasileiros aderiram ao protestantismo, que continua crescendo com fôlego renovado graças ao trabalho de uma nova geração de pastores.
Das três grandes correntes evangélicas presentes hoje no Brasil (veja quadro), a neopentecostal é a que mais cresce. Surgida na década de 70, ela teve como principais expoentes pregadores como o pastor Romildo Ribeiro Soares, conhecido como R.R. Soares, e o bispo Edir Macedo. Juntos, eles fundaram a Universal do Reino de Deus e lotaram estádios com seus brados de cura e suas performances exorcistas. Eram tempos muito diferentes para os evangélicos: no início dos anos 90, eles não passavam de 9% da população brasileira. Na tentativa, então, de abrir portas para o neopentecostalismo nascente, alguns pastores acabaram por arrombá-las. Um dos episódios mais famosos ocorreu em 1995, durante a transmissão do programa Despertar da Fé, na TV Record. Para salientar a diferença entre os evangélicos e os "adoradores de imagem" católicos, o pastor Sergio von Helde, da Universal do Reino de Deus, desferiu socos e pontapés em uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. A cena foi ao ar no dia 12 de outubro, data que os católicos devotam à santa, e ganhou tamanha repercussão que, quatro dias depois, o bispo Edir Macedo foi obrigado a ir à TV pedir desculpas públicas aos católicos. Embora Macedo continue a ocupar o posto de líder máximo da Universal e R.R. Soares, hoje líder de uma igreja dissidente, mantenha no ar seu programa religioso há mais de 25 anos, ambos os religiosos pertencem a uma geração passada. Na pregação das novas estrelas evangélicas não há espaço para destruição de santos ou descrições sobre o apocalipse e o demônio. O Deus que pregam os telepastores da segunda geração não tem na ira sua característica principal. Tampouco cultiva o hábito de espreitar as carteiras de fiéis à procura de tostões secretamente sonegados, como sugeriam, ameaçadores, muitos dos pastores antigos, defensores da tese de que uma boa graça tem seu preço.
Claudio Rossi![]() |
| VELHA-GUARDA Decano dos televangelistas brasileiros, o pastor R.R. Soares está há mais de 25 anos no ar |
A nova geração de líderes evangélicos achou um caminho muito mais certeiro e útil de chegar ao coração dos fiéis: o da auto-ajuda. A promessa é a mesma que ofereciam pentecostais e neopentecostais da geração passada: o da felicidade e prosperidade aqui e agora. Só que, para alcançá-las, os novos pastores sugerem outras ferramentas: além da fé, o bom senso; somado à intervenção divina, o esforço individual. "O discurso atual dá mais ênfase ao pragmatismo e à pró-atividade do fiel do que ao sobrenatural", avalia o pesquisador da PUC-SP Adilson José Francisco. "Em vez de pregar, como fazem algumas igrejas, a libertação de todos os males por meio do exorcismo, por exemplo, esses pastores adotam alguns conceitos da psicologia: para se livrar dos problemas, é preciso uma mudança de atitude, na maneira de ver o mundo", explica o antropólogo Flávio Conrado, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião. Um indicativo claro dessa transformação está na comparação da produção literária dos velhos e dos novos pastores. Títulos como A Fé de Abraão ou Estudo do Apocalipse, assinados pelo bispo Edir Macedo, abrem lugar nas prateleiras das livrarias evangélicas para obras com títulos como Jamais Desista!, do pastor metodista Silmar Coelho, ou Vencendo Obstáculos e Conquistando Vitórias, de autoria de Silas Malafaia. Um dos nomes mais conhecidos da Assembléia de Deus, o pastor Malafaia chega a vender, por ano, 1 milhão de DVDs e CDs de pregações de conteúdo motivacional. Em seus discursos, as parábolas bíblicas dão lugar à objetividade de um Lair Ribeiro. Conflito amoroso? "Vem cá, minha filha: o sujeito é bonitão e sarado, mas não trabalha nem estuda? Então, fica com o magrinho narigudo que é melhor! Ele pode ser feio mas é trabalhador", brada o pastor. Perda de emprego? "Meu amigo, você ganhava 700 reais e viu abrir uma porta de 300 reais? Mete a cara! Não fica dizendo que Deus está olhando, que vai abrir uma porta melhor... Deus tá vendo o quê, rapaz? Vai trabalhar!" "Os neopentecostais pregam o faça-você-mesmo", afirma o historiador e especialista em religiões da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Eduardo Bastos de Albuquerque. "E, muitas vezes, a técnica funciona. Ao deixar de beber, fumar, brigar dentro de casa e ao passar a trabalhar, o fiel alcança, de fato, uma melhoria de vida."
Para o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC do Rio Grande do Sul, o sucesso do discurso dos novos pastores está diretamente relacionado ao que ele chama de "desencanto" dos fiéis em relação à idéia da "barganha" com Deus proposta pelos antigos pregadores. "Há certa decepção com esse discurso fácil de que bastaria dar o dízimo e orar que Deus deixaria todo mundo feliz, vitorioso e saudável", diz. O sociólogo chama ainda atenção para o fato de que, ao enfatizarem a importância da racionalidade em detrimento da magia, os novos pastores estão mirando um segmento que, embora ainda incipiente, começa a crescer: o dos fiéis de classe média. As últimas pesquisas indicam que a maior parte dos evangélicos ainda pertence às classes econômicas mais pobres. O estudo "Retratos das religiões no Brasil", divulgado no ano passado pela FGV, mostra que, enquanto o porcentual de evangélicos em todo o país, em 2000, era de 15%, na periferia das regiões metropolitanas ele chegava a 20%. Na comparação com fiéis de outras religiões, a situação socioeconômica dos evangélicos também é desfavorável. Em média, eles ganham 7% a menos do que os trabalhadores católicos, diz a pesquisa. Alguns indícios, no entanto, sugerem que as igrejas evangélicas começam a penetrar de forma mais intensa nas classes econômicas mais altas. A formação dos próprios pregadores é um desses indicativos. O decano R.R. Soares, por exemplo, é filho de pedreiro, não tem curso superior e, antes de ingressar na carreira religiosa, era comerciante, assim como Edir Macedo. Dos cinco pastores da nova geração ouvidos por VEJA, quatro têm curso superior e dois deles possuem pós-graduação: Malafaia, da Assembléia de Deus, é teólogo e psicólogo; Rinaldo de Seixas Pereira, da Bola de Neve Church, é formado em propaganda e marketing, com pós-graduação em marketing; Silmar Coelho, da Igreja Metodista Wesleyana, é teólogo, com doutorado em teologia e liderança; e Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, é físico, com especialização em ressonância magnética nuclear.
A qualificação desses novos pregadores não contribuiu apenas para que eles modernizassem seus discursos, mas, em alguns casos, para que aprimorassem técnicas de gerenciamento de suas igrejas também. O conceito de segmentação está presente nos espaços e eventos dedicados ao público jovem da igreja Sara Nossa Terra. "Dar um tratamento diferenciado a jovens ou idosos é uma preocupação que não existe nas igrejas evangélicas mais antigas", diz o professor e pesquisador da Universidade de Brasília Rogério Rodrigues da Silva. Os evangélicos são hoje o grupo religioso que mais cresce no Brasil – e nada indica que isso vá mudar. Basta ver a rapidez com que a igreja cria novas lideranças. Atualmente, o número de pastores evangélicos por fiel é dezoito vezes maior que a proporção de padres por católico. Enquanto a Igreja Católica não consegue ordenar mais do que 900 padres por ano, só um único instituto evangélico de São Paulo forma, no mesmo período, 200 pastores . O sucesso da doutrina, a facilidade de comunicação com os fiéis e a eficiência na gestão das igrejas permitem vislumbrar templos evangélicos cada vez mais cheios. Projeção feita pelo economista Marcelo Neri indica que em 2015 mais de 20% da população brasileira será evangélica. É o rebanho cada vez mais satisfeito com o que lhe proporciona sua fé.
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Fotos Roberto Setton![]() |
| CAMPEÃO DE VENDAS Silas Malafaia, que vende 1 milhão de CDs e DVDs de pregação: "Naquilo que o homem pode resolver, Deus não move uma palha" |
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| Nome: Silas Malafaia Idade: 48 anos Formação: psicólogo Igreja: Assembléia de Deus Sede: Rio de Janeiro (RJ) Número de templos: 180 000 |
Há 24 anos no ar, o telepastor Silas Malafaia, da Assembléia de Deus, tem idade e tempo de estrada suficientes para ser considerado um pregador da antiga geração. Basta que comece a falar, no entanto, para que se perceba que sua oratória não poderia ser mais atual. Malafaia tornou-se o campeão brasileiro de venda de DVDs e CDs de pregação (1 milhão de unidades comercializadas por ano) com o discurso evangélico da moda: aquele que defende que, na busca pela felicidade, recorrer ao bom senso e ao esforço individual pode ser muito mais eficaz do que ficar aguardando a providência divina. Seu grande ensinamento é: "Deus move o céu inteiro naquilo que o ser humano é incapaz de fazer. Mas não move uma palha naquilo que a capacidade humana pode resolver".
Como se forma um pregador
Além de freqüentar cursos de teologia
e de oratória, candidatos a pastor agora
aprendem a pregar na TV e portar-se à mesa
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Juliana Linhares
Fotos Fabiano Accorsi![]() |
| ESCOLA DA FÉ Helton (no centro), professor de mídia cristã, e Helba, professora de etiqueta: na tela, sorrir sempre; à mesa, comer devagar |
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Não é milagre. O nascimento de um pastor capaz de arrebatar multidões ou comandar programas de televisão campeões de audiência é fruto de uma bem arquitetada operação em que só vocação espiritual não basta. Para conseguir pular dos bancos dos templos para os púlpitos, os jovens candidatos a pregador das igrejas evangélicas de linhas pentecostal e neopentecostal aprendem de noções de teologia a oratória, passando por técnicas para apresentação em rádio e televisão e até etiqueta. Na semana passada, VEJA esteve na sede do Instituto Bíblico das Assembléias de Deus (Ibad), em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo. Todos os anos, o Ibad forma 210 novos pastores que vão comandar os mais de 180.000 templos que a Assembléia de Deus – hoje a maior igreja evangélica do Brasil, com 8,6 milhões de fiéis – tem espalhados por todo o país. Embora o curso seja o mesmo para homens e mulheres, apenas os primeiros podem ser ordenados na função. As alunas, ao fim do treinamento, formam-se missionárias. Sua tarefa é abrir novas igrejas.
Fundado em 1958, o Ibad tem estrutura semelhante à de uma boa universidade. Como grande parte dos alunos vem de regiões distantes do país, seus três prédios abrigam dormitórios com capacidade para até 100 pessoas: homens, mulheres e casados são acomodados separadamente. Além das salas de aula, o instituto dispõe de um moderno estúdio de gravação de rádio e TV com cinco câmeras e duas ilhas de edição, onde são ministradas as aulas de "mídia cristã". Nelas, os alunos aprendem as mesmas técnicas usadas por apresentadores de programas de televisão. "Termine as frases sempre sorrindo", diz o professor Helton Souza à aluna Simone Imroth, que veio de Santa Catarina para cursar os três anos de preparação. "É mais agradável para os telespectadores", explica. "É importante também olhar diretamente para a câmera. Dessa forma, você passa confiança para o público."
O que diferencia o curso de TV do Ibad de uma aula em uma faculdade de comunicação é a rígida disciplina imposta aos alunos. Há um uniforme para os homens e outro para as mulheres. Os primeiros têm de estar sempre barbeados e vestindo camisa de cores sóbrias, com terno e sapatos pretos. As mulheres usam camisa branca, saia, sapato e casaco escuros. Uma leve maquiagem é permitida para elas. Em todas as aulas, os professores transmitem aos alunos a noção de que o pastor é um modelo a ser seguido. "Os fiéis vão observar como vocês se comportam à mesa, se comem devagar ou afobadamente, se limpam a boca no guardanapo ou na borda da toalha", ensina a professora Helba Galvão Lemos, responsável pelas aulas de etiqueta. Nelas, os aspirantes a pastor aprendem desde como posicionar corretamente copos e pratos na mesa até a maneira certa de usar o talher de peixe.
Essa grade curricular – em que aulas destinadas a aperfeiçoar a relação entre o pastor e seus fiéis ganham tanto ou mais ênfase do que os estudos bíblicos – tem sido a tônica dos cursos realizados sobretudo nas igrejas do ramo neopentecostal. Esse grupo, uma dissidência dos pentecostais, é hoje o que mais arrebanha fiéis no Brasil. A velocidade de seu crescimento aumenta na mesma proporção em que diminui o tempo exigido para a formação dos que vão comandar os seus milhares de templos no país. A Universal do Reino de Deus, por exemplo, do bispo Edir Macedo, chegou ao paroxismo ao optar simplesmente por abrir mão dos cursos de formação. Na Universal, os novos pastores são formados no dia-a-dia da igreja. É observando os mais experientes que os aspirantes à carreira aprendem de técnicas de exorcismo e cura a métodos de gerenciamento de templos. "É um modelo funcional para as igrejas. Além de agilizar o processo de formação, reduz o alto investimento na preparação de novas lideranças", diz Ricardo Mariano, professor da PUC do Rio Grande do Sul e autor do livro Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. Entre evangélicos tradicionais, como luteranos e batistas, a formação de um pastor leva até cinco anos. Além de um curso superior em teologia, o candidato tem de passar por um estágio de um ano antes de assumir o comando de um templo.
A diferença nos vários tipos de formação entre os ramos evangélicos resulta em distintos perfis de pastor para cada igreja. Uma pesquisa realizada em 2004 pelo psicólogo Rogério Rodrigues da Silva na Universidade de Brasília mostrou que, enquanto entre os evangélicos históricos o porcentual de pastores com mestrado e doutorado é de 17%, nos ramos neopentecostais esse número baixa para 1%. "A ênfase na preparação prática ajuda no crescimento do número de fiéis, mas a falta de uma base mais sólida pode tornar o atendimento dos pastores mais precário", afirma o teólogo Lourenço Stelio Rega. Nas igrejas católicas, a formação de um padre é um processo que leva dez anos e inclui dois diplomas de graduação – um em teologia e outro em um curso da área de humanas. A manutenção da tradição tem seu preço: atualmente, segundo estudo inédito do professor Marcelo Neri, da FGV, apesar de o número de evangélicos brasileiros ser quase cinco vezes menor que o de católicos, o número de pastores é quatro vezes maior que o de padres.












