coração de manteiga
O novo Super-Homem tem vilões,
ação, planos diabólicos e tudo
o que é de praxe. Mas, no fundo,
ele quer ser mesmo é um romance
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Isabela Boscov
Fotos divulgação![]() |
| O novato Routh: tão encantador quanto Reeve, mas um tantinho menos ingênuo |
Na redação do Planeta Diário, Clark Kent descobre que Lois Lane está a bordo de um avião prestes a se incendiar na estratosfera. Mal há tempo de ver o "S" de Super-Homem aparecer sob a camisa que ele vai abrindo e o herói já está a alguns milhares de metros de altitude, salvando Lois da morte (e provocando, num estádio que vai servir de campo de pouso, emoções que os fãs de beisebol nunca sonhariam sentir). O momento dessa primeira transformação de Kent em Super-Homem não dura nem um segundo a mais ou a menos do que deveria durar; é calibrado à perfeição para ser icônico. Está aí, sem dúvida, o ponto em que o diretor Bryan Singer se supera: o dos tempos e cadências que regem um filme de ação que aspira a ser algo mais. No caso de Super-Homem – O Retorno (Superman Returns, Estados Unidos/Austrália, 2006), que estréia nesta sexta-feira no país, essas aspirações incluem não apenas ressuscitar o decano dos super-heróis (se possível, saindo da sombra do filme de 1978, que lançou Christopher Reeve no papel), mas fazer com que a platéia experimente um pouco do peso carregado por um homem que todos julgam ser um salvador. Está-se aqui menos no território de X-Men, o outro quadrinho que Singer verteu para o cinema, e mais no de A Última Tentação de Cristo – o da dúvida e revolta que, supõe-se, atingem os messias divididos por uma natureza meio humana e meio divina.
No argumento criado por Singer, depois de cinco anos, durante os quais foi ver de perto as ruínas de Krypton, seu planeta natal, o Super-Homem (o novato Brandon Routh) volta para uma Metrópolis mudada. Pior: para um mundo mudado, ainda mais violento e desnorteado do que o que ele deixara. Metrópolis, como se sabe, é Nova York, e Super-Homem – O Retorno incorpora obrigatoriamente o sentimento de caos que se seguiu ao 11 de Setembro, além do pesar pelo holocausto que sempre pontua o trabalho de Singer. Como o mundo do nazismo, esse para o qual Clark retorna é um mundo do qual a idéia de um deus parece ter se ausentado. Personificando o titubeante Clark Kent, o herói retoma seu emprego no Planeta Diário para pelo menos reencontrar Lois Lane (Kate Bosworth). Mas ela não só arrumou um filho (de suspeitíssimos 5 anos de idade) e um noivo, como vai receber o Prêmio Pulitzer, por um artigo intitulado "Por que o mundo não precisa do Super-Homem". Não há fúria no inferno que se compare à de uma mulher desprezada, e Lois não tem nenhuma palavra boa para dizer sobre o sujeito que, apesar de parecer tão especial, sumiu de sua vida como um canalha qualquer.
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| Spacey como Lex Luthor: um plano maléfico que parece saído de Austin Powers |
Com tanta coisa acontecendo, seria quase dispensável ter também um vilão. Mas, como o item é considerado de rigueur, Kevin Spacey, de cabeça raspada e com aquela enunciação fastidiosa, faz as honras como Lex Luthor. Como em tantas outras adaptações de quadrinhos – inclusive a mais sensacional delas, O Homem-Aranha –, é nesse flanco, o dos arquiinimigos, que o gênero mostra a sua fragilidade. Depois de quase duas décadas ininterruptas de entretenimento marcado pela ironia e pela paródia, hoje não há plano maligno que não pareça criação do Dr. Evil de Austin Powers. O de Super-Homem – O Retorno não é exceção: apesar de muita conversa sobre vingança e kryptonita – a única coisa que pode matar o Homem de Aço –, tudo o que Luthor quer é, ao fim e ao cabo, lançar-se em grande estilo no ramo imobiliário.
Para simplificar, então, pode-se dizer que Luthor representa o que há de mau nesse filão, e o Super-Homem, o que resta de interessante nele. Se um produtor tivesse coragem (e, dado o zelo dos fãs de quadrinhos, é, sim, preciso ter coragem) de riscar de um roteiro como esse tudo o que ele tem de obrigatório, o filme de Singer não teria de lidar com o entulho de planos pretensamente diabólicos e personagens que não têm o que fazer. (A lista é grande. Vai dos capangas de Luthor e de Kitty, sua namorada desmiolada, ao staff do Planeta Diário.) Aí então Super-Homem – O Retorno seria exatamente aquilo que o diretor quer fazer dele: uma história de amor complicada, em que os atos heróicos do personagem ao mesmo tempo atraem a mulher que ele ama e o afastam dela.
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| Lois (Kate Bosworth) esnoba Clark Kent: as mulheres são cegas |
No filme de 1978, dirigido sem muita personalidade por Richard Donner, esse viés funcionava por causa de Christopher Reeve, um ator tão hábil que sabia ser ingênuo sem parecer boboca, e que teve a excelente iluminação de retratar o Super-Homem e seu alter ego Clark Kent como dois papéis desempenhados por um homem cuja verdadeira identidade não seria nenhuma dessas duas, mas uma terceira – que permanece misteriosa porque uma mulher superficial como Lois (ou como a platéia) não tem sensibilidade para enxergá-la. Em Super-Homem – O Retorno, a idéia funciona por razões mais objetivas: porque Singer entende o personagem, porque Routh tem muito do encanto (embora menos da ingenuidade) que Reeve tinha e porque as cenas de ação, tratadas com uma fineza rara no cinema, definem que tipo de homem o herói é – todo explosão e potência no calor da hora, todo cavalheirismo nos finalmentes. Richard White (James Marsden), o noivo de Lois Lane, é, para azar geral, um cara bacana, e também não lhe faltam iniciativa e virilidade. Mas não é difícil entender por que a repórter fica tão balançada com a volta do super-herói. Ao menos no inconsciente, ao escolher um parceiro as mulheres escolhem também passar o resto da vida se indagando se não abriram mão de um outro destino, ideal; Lois tem de lidar com o problema na prática, e não é à toa que ela aqui é tão mais tensa que em suas encarnações anteriores.
A pedra de toque do personagem comercializado em 1938 pelos rapazes Jerry Siegel e Joe Shuster sempre foi este poder simbólico: a idéia de que dentro dos Clark Kent do mundo, tão tímidos, desajeitados e míopes, existe em forma latente um herói pronto para despontar e arrebatar a todos. Mas se os Clark de verdade podem ao menos sonhar um dia tornar-se aquilo que imaginam, o herói, ao contrário, está fadado a ser sempre dois – o Clark Kent que Lois Lane acha insípido demais até para ser seu amigo e o Super-Homem por quem ela é apaixonada, mas que tem atribuições pesadas demais para poder corresponder a ela. E aí vai, de quebra, uma explicação razoável para o fato de que apenas os óculos quadrados e pretos usados por Clark bastem para impedir que Lois, sempre tão abelhuda, descubra quem ele realmente é: o verdadeiro disfarce não está na roupa, mas na insegurança que Clark afeta em relação à sua masculinidade. Assim é se lhe parece, diz Super-Homem – O Retorno, um filme inteligente e às vezes até tocante – com (e não de) um super-herói.
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SANTA MILITÂNCIA, BATMAN!
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| Keanu como Constantine: moreno, e daí? | |
Kate Bosworth, a Lois Lane de Super-Homem – O Retorno, tem um olho castanho e outro azul, é uma graça e fica muito bem loira. No filme, porém, ela arrasta uma cabeleira castanha e sem forma, como uma dona-de-casa estressada demais para dar um jeito no que sobrou da permanente malfeita. Sim, é verdade: Lois não é uma vamp, e é tradicionalmente morena. Mas a decisão de tingir Kate deveu-se em boa parte ao "fator nerd": a pressão daqueles fãs radicais para que nenhuma heresia seja cometida contra seus ícones. Esse é um efeito colateral curioso (e irritante) do vício em cultura pop: a infantilização extrema. Como o garoto de 5 anos que fica bravo quando o pai esquece algum detalhe de sua historinha favorita, esses fãs mais sôfregos se revoltam quando um diretor muda a cor de um uniforme, a idade de um personagem ou até algo tão trivial quanto um penteado em seus objetos de adoração. Como diria William Shatner, o Capitão Kirk de Jornada nas Estrelas (uma das séries de mais alto fator nerd da história), aconselha-se a esse pessoal que pare de levar filmes e gibis a sério, cresça, arrume uma namorada e arranje algo de útil para fazer.
O mais divertido é a freqüência com que esses xiitas têm de engolir os próprios sapos. Quando o diretor Tim Burton anunciou que Michael Keaton seria seu Batman, foi uma grita: onde já se viu um Homem-Morcego assim tão sem queixo? Três atores depois, Keaton é considerado o melhor dos que se aventuraram no papel. Não é improvável que o futuro reserve um julgamento semelhante para Daniel Craig, sexto no revezamento de 007 – e o primeiro loiro. "O nome é Bond, e não Blond!", protestaram tablóides e websites, com tal fúria que Craig tem se escondido, por medo de levar tomatadas. Detalhe: ninguém viu sua performance. Keanu Reeves, que parecia blindado pela popularidade de Matrix, viu-se na linha de fogo ao viver o herói dos quadrinhos Constantine – ele é moreno e americano, e não loiro e inglês, como definido no gibi. O filme estreou e Keanu, afinal, mostrou-se um excelente caçador de demônios, seja qual for a cor de seu cabelo ou a origem de seu sotaque.



DÚVIDAS CRUÉIS 
