O fracasso ensina
O especialista em design diz que os desastres
envolvendo obras ou máquinas se transformam
em combustível para o avanço da tecnologia
Rosana Zakabi
|
O americano Henry Petroski, professor de engenharia e história da Universidade Duke, é um dos mais respeitados especialistas em design, a técnica de criar produtos atraentes e funcionais. Nos últimos anos, ele tem se dedicado a investigar um fenômeno: mesmo com a tecnologia de que se dispõe hoje, por que continuam a ocorrer falhas às vezes catastróficas em novos projetos de engenharia? Como exemplo, ele cita a série de acidentes causada recentemente nos Estados Unidos por um modelo de pneu defeituoso. O trabalho resultou num livro recém-publicado, Success through Failure – The Paradox of Design (O Sucesso através do Fracasso – O Paradoxo do Design), ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Na obra, Petroski chega a duas conclusões. Primeiro, enquanto existir progresso tecnológico, erros e acidentes continuarão acontecendo. Segundo, esses erros são valiosos para diminuir o risco de novas falhas no futuro. "Se o Titanic não tivesse afundado, não se descobririam as falhas de seu projeto", ele exemplifica. Da Carolina do Norte, onde mora, Petroski falou a VEJA.
Veja – O que é um bom projeto?
Petroski – O bom design, aplicado tanto a um eletrodoméstico como a um edifício ou uma ponte, incorpora o espírito de aperfeiçoamento inerente ao ser humano, a vontade de tornar o mundo mais prazeroso e divertido. Um design espetacular não precisa ser uma obra de grandes proporções. Muitas vezes, trata-se de um objeto simples e pequeno, como aquele dispositivo de plástico que se espeta no meio da pizza para impedir que ela grude na tampa da caixa durante o transporte. É um bom design porque resolve um problema comum de maneira bastante econômica e eficiente.
Veja – O que é mais importante: beleza ou funcionalidade?
Petroski – No melhor design, funcionalidade e estética são tratadas com igual importância. Uma não deve sobressair à outra. Devem se complementar de forma harmoniosa.
Veja – Que papel desempenha a criatividade no mundo moderno?
Petroski – Em tese, se nada mais fosse inventado, o mundo poderia funcionar bem com os objetos e sistemas já existentes. Entretanto, faz parte de nossa natureza querer melhorar o que é ineficiente, deselegante e incompleto. A criação de novidades torna-se imperiosa quando a qualidade de vida entra em conflito com a percepção de que determinado objeto ou construção utilizados atualmente são imperfeitos. Mesmo que ninguém clame por uma ponte mais longa ou um avião mais rápido, o desafio técnico de produzi-los impulsiona sua criação e construção.
Veja – Como pensam os grandes inovadores tecnológicos?
Petroski – Eles enxergam falhas onde a maioria das pessoas vê apenas sucesso. Percebem no fracasso a oportunidade de criar algo melhor do que o que já existe e também de prevenir falhas no futuro.
Veja – Isso significa que o fracasso impulsiona os bons inventores?
Petroski – Sem dúvida. Enquanto houver progresso tecnológico, erros e acidentes continuarão acontecendo. A falha servirá de lição, desafiará os engenheiros a corrigi-la e, dessa forma, se transformará em combustível para o avanço das tecnologias. Esse é o paradoxo do design e das criações em geral. Historicamente, aprendemos mais pelos fracassos do que pelos sucessos. As mais importantes criações dos últimos tempos foram aquelas que focaram nas limitações e nas falhas. A Ponte de Quebec, hoje um dos símbolos do Canadá, é um exemplo clássico disso. Ela foi projetada com base num sucesso anterior, mas desabou duas vezes quando ainda estava em construção. A obra só deu certo depois que os engenheiros decidiram abandonar o projeto original e criar outro modelo.
Veja – A história tem vários casos de pontes que não deram certo. Um dos mais recentes ocorreu em 2000, em Londres, quando a Ponte do Milênio, ao ser inaugurada, balançou tanto que teve de ser interditada. Por que existem tantos fracassos envolvendo pontes?
Petroski – Estatísticas mostram que, desde meados do século XIX, a cada trinta anos ocorre um grave acidente envolvendo uma ponte de grande porte. Esse é o tempo que uma geração de engenheiros leva para suprir a geração seguinte com a experiência de projetos bem-sucedidos. Ao criarem uma nova ponte, os engenheiros precisam mapear as possíveis falhas e desafiar a si próprios o tempo todo para que a obra dê certo. A partir do momento em que o projeto é vitorioso, a tecnologia utilizada acaba sendo vista como algo natural e passa a ser reproduzida em novos projetos, sem que se tenha o cuidado de avaliar se eles podem mascarar alguma falha. Foi o que aconteceu com a Ponte do Milênio. O projeto da ponte era ousado e moderno, mas o erro dos engenheiros foi não prever que uma multidão caminhando em cima dela a faria trepidar, danificando sua estrutura. Apenas nos primeiros anos deste novo século assistimos ao desabamento do teto do novo terminal do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, à queda do supersônico Concorde e ao recall de milhões de pneus Firestone, aos quais se atribuiu uma série de acidentes fatais com automóveis Ford.
Veja – Por que falhas como essas continuam acontecendo mesmo com as tecnologias hoje disponíveis?
Petroski – Um dos maiores erros cometidos pelos engenheiros é acreditar que dominam com perfeição uma determinada técnica. O excesso de confiança faz com que eles se concentrem demais nos aspectos inovadores de seus projetos e descuidem dos detalhes básicos, que manterão a obra de pé. Os engenheiros pensam que prédios e pontes de um ou dois séculos atrás só caíam porque haviam sido projetados sem os recursos tecnológicos existentes hoje. Isso não é verdade. As estruturas obedecem às mesmas leis da natureza, independentemente de quando foram criadas. Ou seja, um projeto malfeito responderá da mesma maneira que no passado.
Veja – O conhecimento acumulado em séculos de fracassos não é suficiente para evitar que novos erros ocorram?
Petroski – Acontece a todo ser humano descuidar do fácil e do comum. Cortamos o dedo fatiando legumes e tropeçamos ao subir escadas, embora saibamos perfeitamente como proceder em cada uma dessas ações.
Veja – É preciso falhar primeiro para ter sucesso depois?
Petroski – Não necessariamente. O que precisamos é entender como um projeto pode falhar e incorporar características que previnam diferentes tipos de falhas. Na maioria das vezes, entretanto, o sucesso é fruto do aprendizado com fracassos anteriores. Nas indústrias automobilística e aeronáutica, cada novo produto passa por uma bateria de testes de qualidade que pode durar anos. Possíveis falhas são eliminadas durante esse processo antes de o produto ser lançado no mercado. Mas esses testes só se tornaram prioridade nas indústrias devido à quantidade de acidentes envolvendo automóveis e aeronaves ao longo da história.
Veja – O naufrágio do transatlântico Titanic foi atribuído a uma série de erros cometidos desde a fase do projeto. Como a tragédia poderia ter sido evitada?
Petroski – A função do designer é antecipar como uma obra pode falhar. Ao construírem o Titanic, os responsáveis pela obra deveriam ter previsto a possibilidade de o navio colidir com um iceberg e calculado melhor a construção do casco, o material utilizado e a quantidade de botes salva-vidas disponíveis no navio. O problema é que as exigências do luxo se sobrepuseram às da segurança. Ironicamente, o fracasso do Titanic contribuiu muito mais para o desenvolvimento de navios mais seguros do que se ele tivesse sido um sucesso. Se o navio não houvesse colidido com o iceberg na viagem de inauguração, a falsa idéia do navio perfeito, impossível de afundar, teria incentivado a criação de outras embarcações do mesmo tipo, com modelos cada vez maiores e mais arriscados.
Veja – Existe o design perfeito?
Petroski – Não acredito nisso. Tudo pode ser aperfeiçoado. No século XIX, quando se inventou a varinha de madeira utilizada pelos professores em sala de aula para mostrar detalhes no quadro-negro, chegou-se a considerá-la uma das grandes invenções da época. Logo se percebeu que tinha muitas falhas. Era incômoda para carregar, quebrava com facilidade e, em algumas escolas, passou a ser utilizada para aplicar castigos nos alunos. Com o tempo, surgiram versões aperfeiçoadas da varinha, como aquela feita de metal e retrátil como uma antena de carro. Mais recentemente, para o mesmo fim, criou-se o bastão a laser. O objeto sem dúvida se tornou melhor, mas ainda está longe da perfeição.
Veja – Como saber qual o momento certo de redesenhar um objeto?
Petroski – Um objeto precisa ser refeito quando a intolerância com suas imperfeições supera a apreciação de seus benefícios. Os telefones celulares antigos eram grandes e pesados, incômodos de carregar. Eles podem ter servido bem durante determinado período, mas chegou um ponto em que sabíamos que era possível fabricar celulares menores e, assim, mais desejáveis. A disponibilidade de aparelhos mais compactos logo colocou os modelos antigos em desuso.
Veja – Se o senhor pudesse redesenhar algo, o que escolheria?
Petroski – Eu redesenharia o supermercado, porque acho desconfortável a disposição convencional de longos corredores paralelos, principalmente quando o objetivo é comprar apenas um ou dois produtos.
Veja – Como seria o supermercado ideal?
Petroski – Eu e meu filho, que também é engenheiro, desenhamos um supermercado cujos corredores saem de uma área central, tornando mais fácil e rápida a ida de um lado para outro. Nosso projeto também prevê caixas registradoras instaladas em cada canto da loja. Assim, sempre haveria um caixa perto de onde se terminasse de fazer as compras.
Veja – Existem criações eternas, que não ficam ultrapassadas com o passar do tempo?
Petroski – Existem vários objetos ou projetos que continuam atuais independentemente de quando foram criados. É o que chamamos de obras-primas, ou clássicos, e os grandes museus, como o Louvre, estão cheios deles.
Veja – Qual o conceito de uma obra eterna?
Petroski – Um conceito eterno é aquele que está acima da moda e da novidade, algo que se ajusta perfeitamente a qualquer época. Roupas clássicas, como tailleurs, alguns tipos de cadeira, taças de vinho e copos de martíni se enquadram nessa categoria. Os designers vez por outra tentam modificá-los, mas sem sucesso.
Veja – Um grande designer precisa, necessariamente, ser um grande inovador?
Petroski – Sim, inovação e projeto são aspectos intimamente ligados. O grande designer é aquele que produz algo nitidamente melhor do que tudo o que já havia sido criado anteriormente naquela área. Ou então cria um objeto novo que imediatamente cai no gosto popular. Invertendo o célebre ditado, às vezes a invenção é a mãe da necessidade. Ninguém precisava do iPod ou do telefone celular antes que eles fossem inventados e introduzidos no mercado. Uma vez que foram criados, no entanto, tornaram-se objetos de desejo.
Veja – A concepção de objetos e prédios torna-se cada vez mais arrojada. A sociedade atual é a mais criativa da história?
Petroski – Não. Sempre medimos a criatividade e a inovação pelo que conhecemos e pela época em que vivemos. É difícil para alguém que vive no início do século XXI apreciar todas as implicações do que era criativo e inovador no início do século anterior. Para uma pessoa que não conheceu a TV quando criança, assistir à primeira televisão em preto-e-branco, na década de 50, era uma experiência mágica. Isso parece banal para quem cresceu no fim do século XX assistindo a programas na tela plana, gigante e colorida.
Veja – Qual a diferença entre criar pequenos objetos e grandes obras?
Petroski – O criador de pequenos objetos participa de todos os processos de criação, execução e finalização. Isso fez com que muitos objetos fossem redesenhados ao longo da história e tenham chegado perto da perfeição. É o caso do clipe de papel, por exemplo. Já as grandes obras demandam equipes, o que acarreta limitações. O arquiteto Frank Gehry leva os créditos pelas ousadas obras que cria, mas, para cada prédio erguido, ele depende de uma equipe de engenheiros e arquitetos. Se a equipe não conseguir fazer um bom trabalho, pode arruinar todo o processo de design.
Petroski – Certamente, criar cadeiras é um desafio clássico. Há um bom motivo para isso: nenhuma cadeira é confortável quando utilizada por longo período de tempo.