A melhor biografia de Adolf Hitler disseca
os elementos teatrais de sua personalidade
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Jerônimo Teixeira
Fotos divulgação![]() |
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É bem conhecida a admiração que a cúpula nazista nutria pela obra de Richard Wagner – um músico brilhante, mas também um raivoso anti-semita. Entretanto, na segunda parte de sua conceituada biografia Hitler (vários tradutores; Nova Fronteira; 528 páginas; 59,90 reais), que acaba de ser reeditada, o historiador alemão Joachim Fest observa que o führer estava longe de ser um verdadeiro apreciador de música. Adolf Hitler assistia a Tristão e Isolda e a outras óperas de Wagner sempre que podia. Mas nunca saiu do teatro comentando a performance da orquestra ou dos cantores. Sua atenção voltava-se inteiramente para a cenografia. Esse pendor para o teatro é um traço fundamental de sua personalidade e de sua atuação política. Hitler certa vez se intitulou "o maior ator da Europa". Fest demonstra o acerto dessa definição: o talento dramático de Hitler foi um fator essencial da mistificação das massas pelo nazismo.
É comum imaginar Hitler como um líder alucinado, sedento de poder e propenso a ataques de fúria descontrolada – foi mais ou menos assim que ele foi satirizado por Charles Chaplin em O Grande Ditador. Fest promove uma alteração pequena mas significativa no clichê: no lugar da raiva irracional, aparece o ódio calculado. Hitler planejava cada gesto – até mesmo aqueles proverbiais arroubos coléricos em que ele vociferava até ficar com a boca espumando. Amparado em uma documentação massiva (a bibliografia e as notas do livro compreendem mais de setenta páginas), Fest traçou um retrato perturbador do líder que conduziu o genocídio de 6 milhões de judeus e levou a Alemanha a uma guerra que devastou a Europa. O primeiro volume da biografia reconstitui a formação e o início da luta política de Hitler – do nascimento na Áustria, em 1889, até 1933, ano em que ele se torna chanceler da Alemanha. O segundo tomo acompanha o biografado nos anos críticos que conduzem até a eclosão da II Guerra Mundial – e daí ao suicídio, em Berlim, depois da derrota alemã, em 1945. Para a atual reedição, a biografia passou por uma revisão criteriosa – com direito a consultas a especialistas em diversas áreas, como a história militar, para garantir a qualidade da tradução e a acuidade das informações.
Entre os numerosos fanáticos que constituíram o Partido Nacional-Socialista durante a República de Weimar, Hitler não se destacaria como um grande teórico do ódio racial. Sua originalidade estava no teatro. Hitler foi o grande mestre da espetacularização da política promovida pelo nazismo. Nos congressos triunfais do partido, Hitler supervisionava pessoalmente os detalhes cenográficos, criando uma liturgia nacionalista feita de desfiles, bandeiras e hinos exaltados. Angariou a fama de orador genial – e no entanto, nota Fest, não foi capaz de cunhar uma só frase memorável (as citações obrigatórias da II Guerra ficariam a cargo de seu adversário inglês, Winston Churchill, com seu famoso "sangue, suor e lágrimas"). Os gestos e a ênfase eram mais importantes do que a retórica.
Nos planos de Hitler para seu Reich ariano, esse pendor para o espetacular estava incorporado. O ditador tinha no arquiteto Albert Speer um de seus mais próximos colaboradores. Sentia prazer em discutir reformas urbanas para Berlim, mas se importava apenas com grandiosos prédios públicos e arcos do triunfo – entediava-se quando Speer sugeria planos para bairros residenciais. Sempre consciente de sua própria imagem, Hitler não era um homem espontâneo. Tirava fotos toda vez que experimentava roupas novas, para se certificar de que lhe caíam bem, antes de aparecer em público. Também escondia zelosamente todas as manifestações de alegria – costumava encobrir o sorriso com a mão e não gostava de ser surpreendido quando brincava com seus cachorros. Essa vigilância permanente para não desfazer a pose teatral tinha seu custo em neurose. Hitler era hipocondríaco, e não é implausível que a ingestão maníaca de todo tipo de remédio tenha contribuído para a visível decadência física de seus últimos anos (também há quem especule que suas tremedeiras fossem causadas pela doença de Parkinson). Ele era ferozmente reservado. Apesar de submeter seus interlocutores a longos monólogos, não chegava a compartilhar sua intimidade com ninguém. Magda Goebbels, mulher do ministro da Propaganda, foi talvez quem melhor definiu a personalidade do ditador: "Hitler é simplesmente uma impessoa. Não se pode atingi-lo, tocá-lo".![]() |
| O MAIOR ATOR DA EUROPA Adolf Hitler em suas longas arengas nos eventos nazistas: o tirano angariou a fama de orador genial, mas não cunhou uma só frase memorável. Seu talento estava nos gestos. Para manter a permanente pose de führer, ele resguardava sua imagem com zelo obsessivo. Nunca aparecia em público com uma roupa nova antes de tirar fotos com ela, para atestar o caimento. Hitler resguardava sua intimidade dos mais próximos – e até escondia a boca quando sorria |
Leia trecho de Hitler
Nas inúmeras visitas a Weimar, nem uma vez foi ao teatro, só ia à Ópera, cuja expressão suprema era, a seus olhos, o final do Crepúsculo dos deuses. Quando no palco de Bayreuth o castelo dos Deuses desabava em meio ao tumulto da música, ele sempre buscava no escuro do camarote a mão de Winifred, sentada a seu lado, para depositar um beijo emocionado.87
A necessidade teatral atingia o fundo de seu ser. Era-lhe absolutamente indispensável mover-se num palco, e tinha essa necessidade dramática dos golpes auxiliares, da luz e do ruído do raio e do trovão que se imita dos bastidores. Obcecado pelo velho medo do público se cansar do ator, raciocinava em termos de seqüência de números de espetáculo e fazia tudo para que o número seguinte ultrapassasse o anterior. A febre que caracterizava essas atividades políticas, e lhes dava o aspecto de atos súbitos e desconcertantes para os adversários, era tão indissociável da necessidade de teatro quanto a fascinação que exerciam sobre ele as grandes catástrofes e o incêndio dos mundos, nos quais sua sede de efeitos pessimistas via a maior eficácia teatral. Vendo bem, ele confiava mais nesses efeitos do que em qualquer ideologia: na realidade, sempre levou uma existência teatral e só se sentia à vontade nos mundos de ilusão que podia opor à realidade. A falta de sinceridade, o lado hipócrita, melodramático, o desembaraço na infâmia, tudo o que lhe é indissoluvelmente ligado tem raízes nessas tendências, tal como o desprezo do real foi a sua força, a tal ponto que caminhou de par com o sentido particularmente agudo da realidade e sua capacidade de concentração metódica.
As tentativas que fez para mitologizar sua própria existência desempenharam um importante papel no esforço de auto-estilização. Um dos conservadores que lhe abriu a porta do poder observou a esse respeito que ele jamais perdeu o sentimento do abismo que separava suas modestas origens e o "êxito que o havia arrastado aos píncaros." Desde a juventude jamais deixou de pensar em termos de classe. Às vezes tentou superar a desagradável consciência de suas origens de pequeno-burguês, qualificando-se com ostentação de "trabalhador" ou mesmo de "proletário". O essencial foi que se esforçou para dissimular a inferioridade social com o auxílio da aura mitológica. Que a vocação de grandeza se tenha exprimido precisamente no homem mais desprovido de importância e prestígio social é, sem dúvida, um dos temas mais antigos e mais repetidos da usurpação política. A introdução de seus discursos sempre começava pela evocação do mito "do homem do povo" e descrevendo-se como um "desconhecido combatente da Primeira Guerra Mundial," nada mais que um "sem nome, sem dinheiro, sem influência, sem apêndices," mesmo assim escolhido pela Providência como "o solitário errante surgido do nada." No mesmo contexto, podemos ainda observar que gostava de ver seu séquito vestindo luxuosos uniformes, mas preferia para si a eloqüência das roupas simples para se valorizar pelo contraste. Essa aparência de despojamento, a sombria severidade que se ligava a ele, sua vida retirada e sem mulher, tudo contribuía para que fosse visto pelo grande público como a imagem do grande homem só, arrastando o fardo da eleição, marcado pelo mistério do sacrifício de si mesmo. Quando a senhora von Dirksen lhe disse que pensava freqüentemente na sua solidão, confirmou-lhe a impressão: "Sim, sou muito solitário, mas as crianças e a música me consolam."
Tais declarações mostram-no sem cinismo quanto a si e a seu papel, vendo a si mesmo com tolerante simpatia. No Berghof, tinha diante de si o formidável maciço de Untersberg onde, segundo a lenda, dormia o Kaiser Friedrich I, que devia um dia voltar para dispersar seus inimigos e libertar seu povo oprimido. Hitler via, com emoção, algo significativo no fato de sua residência particular ficar em frente a essa montanha: "Não é acaso. Vejo aí um chamado." Cada vez mais refugiou-se no Berghof, ou então, para fugir ao espírito cáustico dos berlinenses ou à "espessura" dos muniquenses, achava refúgio na serenidade renana. Muitos anos mais tarde ainda lembrava feliz o entusiasmo delirante da multidão numa sua visita a Colônia: "Foram as maiores ovações de minha vida." A convicção de estar encarregado de uma grande missão fazia-o regularmente dirigir-se à Providência quando queria esclarecer a natureza de sua carga histórica:
Sei perfeitamente o que pode um homem e quais são seus limites, mas igualmente estou convicto de que os homens, criaturas de Deus, devem viver segundo a vontade do Todo-Poderoso. Deus não criou os povos para que se percam, se larguem, se arruínem (...) O homem isolado é fraco no seu ser e na sua ação ante a vontade da Providência todo-poderosa, como é imensamente forte quando age no mesmo sentido da Providência. Desce então sobre ele essa força que gerou tudo o que se fez de grande sobre a Terra.


