Folha de S. Paulo
2/7/2006
Se os gastos de campanha do PT repetirem a escrita de 2002, Lula
jogará o país numa nova crise
O SECRETÁRIO DE FINANÇAS do PT, Paulo Ferreira, anunciou que o
partido deverá gastar algo como R$ 55 milhões na campanha pela
reeleição de Nosso Guia. A cifra ampara-se no seguinte raciocínio: "É
razoável pensar no custo da campanha de 2002 acrescido do índice
inflacionário".
Se o comissário está falando sério, o aparelho petista não aprendeu a
lição das contas de 2002. O "custo da campanha" que elegeu Lula não
serve de referência para coisa nenhuma, pois é falso. Para que uma
pessoa possa acreditar na veracidade da prestação de contas
apresentada pelo tesoureiro Delúbio Soares à Justiça, precisa aceitar
que nem um tostão do ervanário pago ao marqueteiro Duda Mendonça
referia-se à campanha de Lula. Só nas suas contas caribenhas, Duda
depositou R$ 10,5 milhões. Lula disse que sua campanha de 2002 custou
R$ 21 milhões.
De uma maneira geral, o caixa dois das campanhas presidenciais é, no
mínimo igual ao caixa um. A que "custo da campanha de 2002" o
comissário Ferreira se refere? Admitindo-se que o PT pretenda fazer
uma campanha gastando R$ 55 milhões numa caixa só, pouco lhe custaria
botar na internet uma exemplar prestação de suas contas. Em 2004,
quando a banda limpa do partido propôs que o partido fizesse isso,
Delúbio Soares ensinou que "transparência assim é burrice". Burrice
foi acreditar que a cáfila de delinqüentes não seria apanhada.
O comissário Paulo Ferreira tornou-se um tipo inesquecível quando
justificou uma das memoráveis patranhas do ministro Antonio Palocci,
dizendo que ele cometera uma "imprecisão terminológica". Aceitando-se
que Delúbio cometeu imprecisões numerológicas, está tudo resolvido.
Breve aqui, CPI.
Plutofilia erudita
Muita gente boa ampara-se em arcanos raciocínios econômicos para
descascar a lei que dá às empregadas domésticas o acesso a carteira
assinada, com direito a FGTS. Fica uma pergunta: se o distinto (ou a
distinta) tem carteira assinada e FGTS, por que a empregada não deve
tê-lo? Pode-se dizer que uma coisa nada tem a ver com a outra, pois a
lei votada na Câmara é demagógica. Coisa assim:
"[Ela vai] dar às empregadas maiores esperanças do que as que podem
corresponder à realidade, embalando esses pobres espíritos com idéias
que não são exatas, que não têm o alcance que eles supõem". Essa
observação é do deputado Moreira Barros, num discurso da segunda
metade do século 19, quando se discutia a abolição da escravatura. Na
versão original, onde se lê "empregadas", lia-se "escravos".
Guia mundial
O Centro David Rockefeller para Estudos da América Latina, que
funciona na Universidade Harvard, tem uma publicação chamada ReVista.
A última trata das 16 eleições marcadas para o período de novembro de
2005 a dezembro deste ano. O artigo sobre a situação brasileira tem
um título duro: "Da Revolução ao "Rouba mas Faz'?". Seu autor é o
professor Scott Desposato, da Universidade da Califórnia.
Leitura própria
O Datafolha informa que Lula tem 31% dos votos dos entrevistados com
nível superior. Alckmin tem 42%. Para que a teoria do eleitorado
"desinformado" prospere, será preciso sustentar que cerca de um terço
dos com-canudo são menos informados que os 20% de entrevistados das
classes D e E que preferem Alckmin.
Novos piratas
Há um novo golpe na praça: pirataria de livros. Em fevereiro passado,
o governo de Minas Gerais fez um pregão eletrônico, licitando a
compra de 800 exemplares do livro "Os descaminhos do São Francisco".
É um libelo contra a transposição do Velho Chico, escrito pelo
jornalista Marco Antonio Coelho. O representante da editora Paz e
Terra pediu R$ 44 mil. Foi derrotado pelo fornecedor Antonio Silvino
da Silva Leme. Fazia o negócio por R$ 23,5 mil. Tratava-se de uma
edição pirata. É parecida, mas felizmente alguns detalhes, como a
tonalidade da cor da capa, permitem a constatação da fraude. Resta
saber como o governo mineiro sai dessa.
Lei de Simonsen
No pequeno município de Tombos (13 mil habitantes, Zona da Mata
mineira), está guardado um monumento à demagogia e ao desperdício do
dinheiro da Viúva. Em 2004 a prefeitura recebeu uma ambulância da
Planam, daquelas que custam R$ 88 mil, dinheiro equivalente a um mês
de arrecadação do ICMS do lugar. Noves fora um tanque de gasolina de
plástico que precisou ser trocado, o serviço e manutenção do
equipamento bebem R$ 2.000 mensais. Como o dinheiro está curto, o
prefeito pediu que a trocassem por dois veículos menores. Nada. Pediu
que a levassem de volta. Nada. Decidiu trancá-la na garagem.
A turma que inventou a Planam deveria ter presenciado o momento em
que o professor Mario Henrique Simonsen enunciou a lei que leva seu
nome: "Amigo, sua idéia é ótima. Por favor, diga-me de quanto será a
comissão. Eu faço o cheque agora mesmo e você promete que não toca
mais no assunto".
COM VOCÊS, UM GRANDE JUIZ: DAVID SOUTER
A decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos que detonou a
legalidade dos tribunais militares especiais criados pelo presidente
George W. Bush contém uma aula sobre o mistério da alma de seus juízes.
A partida ficou em 5 a 3. O presidente da Corte, John Roberts,
declarou-se impedido. Como juiz de segunda instância, ele já votara
contra o iemenita Salim Hamdan, motorista de Osama Bin Laden, preso
desde 2001.
A bolsa de apostas sugeria um empate em 4 a 4. Nesse caso,
continuaria em vigor o DOI-Bush, sistema pelo qual um cidadão pode
ser julgado sem conhecer todas as provas apresentadas pela
promotoria. Pior: a defesa não tem meio de impugnar um depoimento que
provavelmente foi arrancado sob tortura.
A conta era simples: votariam com o governo pelo menos quatro juízes
nomeados pelos presidentes Reagan, Bush I e Bush II. Deu zebra porque
David Souter, indicado por George I, foi para o outro lado e levou a
Corte a uma decisão histórica, que inibe a neurastenia policial da
Casa Branca.
Não é a primeira vez que Souter faz isso. É um personagem que vale a
pena conhecer. Tem 66 anos, está na Corte desde 1990 e era uma
barbada para os conservadores. Raramente ligava sua TV preto e
branco, só assinava a edição dominical do "The New York Times" e
podia-se acertar o relógio pela hora em que chegava ao trabalho. Um
dia uma secretária disse um palavrão light e ele presenteou-a com um
sabonete. Almoça maçã com queijo, vive num apartamento monástico e
dirige um calhambeque. Foi para Washington sem saber quanto ganharia
(US$ 118.690 anuais, um pouco menos que seus similares nacionais).
Durante um jantar na Casa Branca, conversou em latim com com uma
senhora húngara que não falava inglês. Sua declaração para os
jornalistas ao ser indicado para a Corte: "Duas palavras: Oi, tchau".
Souter é solteiro e diz por que: teve uma paixão juvenil, não foi
correspondido e preferiu ficar sozinho.