O Globo
11/7/2006
Em vez de discutir cota, é melhor investir na educação. Não se deve
adotar um sistema que separa por raça, pois isso criará racismo. Não
se pode ferir o princípio constitucional de que todos são iguais
perante a lei. Nunca pode ser revogado o princípio do mérito
acadêmico. Os argumentos se repetem e parecem ótimos. Escondem a
mesma resistência ao tema racial que temos mantido desde a abolição e
as conclusões estão truncadas.
Nunca, os que defendem cotas raciais na universidade propuseram a
escolha entre cotas e qualidade da educação. Não há essa dicotomia. É
uma falsidade para truncar o debate. É fundamental melhorar a
educação em todos os níveis. As cotas raciais não revogam essa idéia.
O princípio da igualdade perante a lei é a pedra que sustenta as
sociedades democráticas e modernas. As ações afirmativas não vão
revogá-lo. A igualdade perante a lei sempre conviveu com o tratamento
diferente aos desiguais. Na área tributária, a regressividade, por
exemplo: a alíquota para os mais ricos é maior. As transferências de
renda são para quem tem renda abaixo das linhas de pobreza e miséria.
Mulheres estão sub-representadas na política e, para tentar vencer
isso, há a cota de 30% nas candidaturas. No comércio internacional,
existe o princípio do tratamento diferenciado para os países mais
pobres. Há muito tempo, o Direito convive com os dois princípios,
como complemento um do outro. Um garante o outro. Tratar da mesma
forma os desiguais acentua a desigualdade. O princípio da igualdade
perante a lei é apresentado na discussão como um truque. Não há
conflito entre ele e o outro princípio civilizatório do tratamento
diferenciado aos desiguais. Quem quer defender o princípio da
igualdade perante a lei deveria fazer um manifesto contra, por
exemplo, a aberração de prisão especial para criminosos com curso
superior.
O mérito acadêmico tem que ser preservado na formação universitária.
Ele não está sob ameaça com medidas para aumentar o ingresso de
negros na universidade. As avaliações de desempenho de diversas
universidades mostram que não há esse risco. Os adversários das cotas
rejeitam as avaliações dizendo que ainda não foi feito um estudo
consistente. O mesmo argumento invalida seus próprios argumentos de
que a qualidade da universidade estará em risco com as cotas. A
universidade americana, que nunca abriu mão do mérito acadêmico, dá
pontuação diferenciada por razões raciais, sociais e até aos
esportistas no ingresso nas escolas.
Não podem ser adotadas políticas que incentivem o racismo. Quem
discordaria disso? Esse argumento usado contra as cotas é um dos mais
perversos truques. As políticas de ação afirmativa não vão criar o
racismo. Não se cria o que já existe. O Brasil tem um fosso enorme,
resistente, entre brancos e negros e é esse fosso que se pretende
vencer. Sem o incentivo à mobilidade, o Brasil carregará para sempre
as marcas da escravidão. Ela tem se eternizado por falta de debate e
de políticas dedicadas a superar o problema.
Empresas internacionais adotam há tempos metas para aumentar a
diversidade de seus funcionários, executivos e gerentes. É um
objetivo desejável no mundo multiétnico e que se quer menos racista e
menos injusto. Órgãos públicos americanos usam nas suas contratações
mecanismos para aumentar a representatividade das várias partes da
sociedade. Governos diversos usam incentivos para determinadas
políticas como parte dos seus critérios de seleção de fornecedores
nas compras governamentais. Nada há de errado e novo nessas
políticas. O que há é que, pela primeira vez, fala-se em usar esses
mecanismos para promover a ascensão dos negros no Brasil. O país tem
um horror atávico a discutir o tema. Já se escondeu atrás de inúmeros
sofismas. Acreditava estar numa bolha não racial, um país diferente,
justo por natureza.
Não existe raça. É fato. Biológica e geneticamente não existe, como
ficou provado em estudos recentes. Isso é mais um argumento a favor
das políticas anti-racistas e não o contrário. Os avanços acadêmicos
na área só servem para mostrar que os negros são mais pobres, têm
piores empregos, ganham menos, não por qualquer incapacidade
congênita, mas por falha da sociedade em construir oportunidades
iguais. Isso se corrige com políticas públicas, iniciativas privadas,
para desmontar as barreiras artificiais ao acesso dos negros à elite.
O debate é livre e benéfico. O problema não é o debate, mas alguns
dos argumentos. E pior: os truques. Acusar de promover o racismo o
primeiro esforço anti-racista após 118 anos do fim da escravidão é
uma distorção inaceitável.
Quem gosta do Brasil assim deve ter a coragem de dizer isso. Quem não
acha estranho, nem desconfortável, entrar nos restaurantes e só ver
brancos, ver na direção das empresas apenas brancos, conviver com uma
elite tão monocromática, tudo bem. Deve simplesmente dizer que
prefere conservar o Brasil como ele é, com os brancos e negros
mantidos assim: nesta imensa distância social.