O Globo
2/7/2006
Quando, ao ser lançado candidato à reeleição pelo PT, o presidente
Lula ameaçou com o aumento da carga tributária caso não fosse
possível cortar os gastos do governo, estava fazendo não apenas uma
autocrítica da gestão de sua administração, mas dando uma indicação
do que poderá vir a ser um eventual segundo mandato, depois de
aumentar os gastos públicos no ano eleitoral em curso. Seja ele
reeleito ou não, se as reformas estruturais, como a da Previdência,
não forem aprovadas na próxima gestão, um aumento da carga tributária
já está encomendado. A carga tributária brasileira é hoje 38% do PIB,
de longe a maior da América Latina. Mas segundo o Banco Mundial 39,2%
do nosso PIB está na informalidade.
Pelas contas do economista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas,
se todos pagassem os impostos que devem ao Estado, a carga tributária
hoje seria de inacreditáveis 57% do PIB. Os números são
indiscutíveis: 85% dos empresários nanicos não pagam qualquer tipo de
imposto direto. Segundo Marcelo Néri, para a minoria que paga, o
total de impostos e tributos em relação à sua respectiva receita é de
6,29% na média e 3,13% na mediana. Em termos técnicos, a distância
entre média e mediana constitui uma medida de desigualdade no
tratamento tributário efetivo.
Se a expansão da base tributária efetiva se desse por intermédio dos
valores da mediana, a alíquota efetiva de arrecadação tributária
neste segmento cresceria simplesmente 1.170%, número que deve ser
visto como um limite superior, até porque o sistema tributário deve
ser progressivo, ressalta Néri. Estamos no que o ex-ministro e
deputado federal Delfim Netto apelidou de estado Ingana, mistura de
Inglaterra com Gana, que taxa como país rico e gasta como país pobre.
Para poder arrecadar além do nível estratosférico dos 38% do PIB
atuais, como nos ameaça o presidente Lula, o Estado brasileiro não
precisaria criar mais impostos, mas apenas apertar a máquina de
fiscalização tributária, como tem sido feito. Teríamos, então, o
Estado “que Esgana a sua população”, na definição de Néri.
Diante da impossibilidade de termos uma carga tributária tão
devastadora, a proposta de Marcelo Néri seria que o Estado se
comprometesse a não aumentar o volume de impostos pagos efetivamente
além dos níveis atuais. Qualquer redução da evasão fiscal seria
transformada em menores impostos, ou créditos fiscais divididos entre
aqueles que pagam impostos.
A idéia é aumentar a responsabilidade fiscal das pessoas físicas e
jurídicas. Entre outras medidas, seria criado um número 0800 para que
as pessoas com os incentivos corretos ajudassem o estado a diminuir o
engano fiscal. No fundo, diz Marcelo Néri, deveríamos fazer um
movimento não para que novos impostos não sejam criados, mas para que
a carga tributária efetivamente paga não passasse de determinado ponto.
Aproveitando a Copa do Mundo, Néri diz que a evasão tributária
constitui, junto com o futebol, um esporte nacional. “A diferença é
que a maioria dos brasileiros é apenas telespectadora do esporte
bretão, enquanto uma parcela substancial e desconhecida da nossa
população é praticante da informalidade”.
Os aforismos Ingana e Esgana são descendentes de outros, mais
famosos. Nos anos 70, Edmar Bacha criou o aforismo BelÍndia, se
referindo à desigualdade brasileira, uma pequena e próspera Bélgica
incrustrada no meio de uma grande e pobre Índia. Marcelo Néri lembra
que a discussão então se centrava nas causas da alta da desigualdade
brasileira ocorrida nos anos 60 e que persistiu na década de 70.
As pesquisas recentes mostram o papel do Estado brasileiro neste
processo concentrador de renda. Por exemplo, os 10% mais altos
benefícios previdenciários concentram quase 48% da massa de
benefícios. Como a Previdência concentra metade dos gastos sociais,
esta elite de aposentados e pensionistas se apropria de 25% do gasto
público brasileiro ou cerca de 4% da renda brasileira.
Por isso, o próprio presidente Lula já anuncia a necessidade de nova
reforma da Previdência, para desespero do PT nesse momento de
campanha eleitoral. Nem mesmo o principal adversário de Lula, o
tucano Geraldo Alckmin, será capaz de discordar em público dessa
necessidade pois, se eleito, terá que fazer a mesma reforma. Mas
deverá criticar duramente a carga tributária, que mesmo tendo
começado a subir no governo de Fernando Henrique, foi no governo Lula
que chegou a limites indecentes.
Nos anos 80, ainda antes do queda do Muro de Berlim, Mário Henrique
Simonsen se referiu ao Brasil como BanglAlbania, que combinava a
pobreza de Bangladesh com o intervencionismo e a ineficiência
estatais da Albânia, o mais fechado dos regimes do bloco soviético
então ainda existente.
Marcelo Néri vê na Constituição de 1988, que criou um novo tipo de
estado, caracterizado pela descentralização da carga tributária e
multiplicação do número de municípios, o início do processo de
aumento progressivo da carga tributária. É nesse ponto que o Brasil
adquire contornos de Ingana, com carga tributária da Inglaterra mas
mantendo a qualidade dos gastos sociais de Gana, na ironia de Delfim.
Mas, ressalta Marcelo Néri, o Estado que engana ao taxar como país
rico e gastar como país pobre, também é enganado pela população,
através de evasão fiscal. “Existem mais relações entre pessoas
físicas e jurídicas do que supõe o Estado brasileiro”, ironiza ele,
que lembra “um relevante teorema da economia, com o sugestivo nome de
Equivalência Ricardiana, em alusão ao famoso economista escocês David
Ricardo, pai da teoria de tributação”, que diz que se o Estado gasta
muito, como o brasileiro, terá que inevitavelmente taxar mais no
futuro. Como queria demonstrar o candidato Lula, como se nada tivesse
a ver com os gastos excessivos.