"A opinião que tens de tua importância te porá a perder", dizia uma
das inscrições nas vigas da biblioteca de Montaigne, cujos Ensaios há
séculos encantam seus leitores. O tema da vaidade dos homens lhe era
caro. O belo ensaio a ele dedicado começa bem: "Talvez não haja
vaidade maior do que sobre ela escrever de forma tão vã." Afinal,
sempre vale lembrar o Eclesiastes: vaidade das vaidades, tudo é vaidade.
Não sei bem por quê, estas lembranças por vezes me vêm à mente ao ler
os pronunciamentos de nosso presidente, cada vez mais encantado
consigo mesmo e com o que considera não só como seu superior
entendimento das coisas deste mundo, como sua autoproclamada
capacidade de transformá-lo. Em arroubo recente, informou-nos que "só
Deus conseguiria consertar em quatro anos o que não foi feito em 500
anos". Ele (Lula), por exemplo, precisaria de oito anos para começar
a corrigir erros e omissões seculares e pôr o País no rumo certo,
deixando uma extraordinária herança a seu sucessor.
Mas falemos antes sobre as heranças, já por eles construídas, com que
Lula e o PT chegaram a 2002 - e chegam às eleições de 2006.
Em 2002, Lula e o PT tinham uma história de mais de 20 anos e,
portanto, uma herança que consigo carregavam. Fazia parte dessa
herança a ferrenha oposição ao lançamento do Real em 1994, chamado de
"pesadelo", de "estelionato eleitoral" e com duração por eles
prevista para poucos meses. Fazia parte dessa herança a oposição às
mudanças constitucionais que permitiriam ampliar os investimentos
privados em infra-estrutura. Fazia parte dessa herança a oposição às
privatizações, à redução do número de bancos estaduais e à abertura
comercial. Fazia parte dessa herança o plebiscito pela suspensão dos
pagamentos das dívidas externa e interna e pelo "rompimento" com o
FMI. Fazia parte dessa herança a oposição do PT à Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) no Congresso, a tentativa de derrubá-la
no STF e a aprovação, em dezembro de 2000, por seu Diretório
Nacional, de texto em que o PT declarava sua posição: "A LRF precisa
ser radicalmente modificada porque o preço da responsabilidade fiscal
não pode ser a irresponsabilidade social." Fazia parte da herança com
que o PT e Lula chegaram a 2002 o programa de governo aprovado em
dezembro de 2001 pelo seu congresso nacional, a mais alta instância
decisória do partido, e que tinha como subtítulo A ruptura necessária
com tudo aquilo que ali estava.
Essa herança, como é sabido, teve conseqüências já em 2002. A taxa de
câmbio se desvalorizou em mais de 50% nos seis meses que antecederam
a eleição de outubro (de R$ 2,4 em março/abril para R$ 3,7 por dólar
em setembro/outubro), o risco País chegou a multiplicar-se por quatro
no período, chegando a 2.400 pontos em outubro, e a inflação em 2002
alcançou 12,5%, tendo mais da metade deste aumento sido registrada
nos últimos três meses do ano. Como bem notou Armínio Fraga em longa
e excelente entrevista ao jornal Valor (23/6), "a economia estava na
UTI, mas isto era a conseqüência de expectativas em relação ao que o
próximo governo faria". E havia fundadas razões para essas expectativas.
A gradual desconstrução dessa herança foi um processo, timidamente
iniciado em fins de junho de 2002 com carta-compromisso do candidato
e ainda não concluído, porque há sérias divisões e ambigüidades não
resolvidas no PT, no próprio governo e nas forças que o apóiam, como
mostra a experiência pós-Palocci, em particular no que diz respeito à
forte expansão recente do gasto público.
Passados quatro anos, é cada vez mais claro que a gradual
desconstrução da herança construída pelo PT para si próprio em 2002
foi facilitada por três ordens de fatores: um contexto internacional
extraordinariamente favorável no quadriênio 2003-2006 (só comparável
ao quadriênio 1970-1973, afirma estudo recente do FMI); uma política
macroeconômica não-petista (nenhuma das "estrelas econômicas" do PT
ocupou qualquer posição relevante na área mais sensível da política
macroeconômica, graças ao médico Palocci e ao apoio que este recebeu
de Lula até o final de 2005); e uma herança não-maldita de inúmeros
avanços institucionais e mudanças estruturais que foram de enorme
serventia ao novo governo, nos mais variados setores, inclusive os
sociais, e aos quais o governo Lula soube dar continuidade, ainda que
pretendendo ter inventado a roda - em alguns casos, com desfaçatez e
hipocrisia.
Entretanto, o contexto internacional, que permitiu que o Brasil
reduzisse extraordinariamente a sua vulnerabilidade externa, não será
tão favorável nos próximos quatro anos. O ministro Palocci, assim
como pessoas-chave de sua equipe, não mais emprestam seu concurso ao
governo. E, nos últimos quatro anos, houve poucos avanços
institucionais, andamento de processos de reforma e melhoria de
contextos regulatórios - pelo contrário.
O discurso sobre "herança maldita", que marcou o imaginário petista,
era não só objetivamente equivocado, como trazia seu prazo de
validade estampado no rótulo: afinal, em menos de quatro anos o
governo Lula se apresentaria ao eleitorado com sua própria herança.
E, em modernas democracias, o que se pode - e deve - esperar de um
governo é que entregue a seu sucessor um país um pouco melhor do que
recebeu de seu antecessor. Como fez FHC, sem achar que a "verdadeira"
História do País começou com ele e sua gestão.
Qualquer governo, em qualquer país do mundo, não só tem seus próprios
erros e acertos, como também constrói sobre avanços alcançados na
vigência de administrações anteriores. O governo Lula não foi, não é
e não será exceção a esta regra. Reconhecê-lo, difícil como possa
parecer para a vaidade humana, é algo que só beneficiaria a
governabilidade futura, qualquer que venha a ser o resultado das
urnas de outubro.