Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 09, 2006

A igualdade que gera desigualdade :Gaudêncio Torquato Estado


Antes de chegar ao final deste parágrafo, dê uma espiada em sua pele.
Olhou bem? É branca, morena, escura? Se a pigmentação for da cor
pardo-clara a negra, é bem possível que você seja um afrodescendente.
Sinta-se, então, integrante dos 146 milhões de brasileiros - 86% da
população, segundo o censo de 2000 do IBGE - que apresentam mais de
10% de contribuição africana no genoma. Quem põe os pontos nos is, ou
melhor, o preto no branco, é um estudo feito pelos professores Sérgio
D. J. Pena (UFMG) e Maria Cátira Bortolini (UFRS) nas regiões
brasileiras. Usando o instrumental da genética molecular e da
genética das populações, os pesquisadores derrubam a débil
argumentação em defesa de projetos voltados para a questão da
igualdade racial. Os dois compartimentos genômicos estudados por
eles, chamados "DNA mitocondrial, de herança matrilínea, e DNA
nuclear, de herança bi-parental", apontam que é muito pequena a
parcela da população sem sangue negro. E mostram que 48% dos
descendentes de negros se consideram brancos.

Conclusão: cotas para negros em universidades ou reservas de cargos
para eles na administração pública não combinam com o mapa do genoma
nacional. A quase totalidade da população a elas teria direito.
Aliás, sob o prisma biológico, o conceito de raça é descartado. Para
descrever grupos humanos a noção de etnia é a correta. Portanto,
todos os grupos étnicos brasileiros têm o direito de reivindicar
cotas. Todos são iguais perante a lei. A discriminação étnica, sim,
deve ser combatida. É compreensível a defesa da inserção do negro no
ensino superior pelo sistema de cotas, atendendo às demandas de 45%
de brasileiros que se declaram pretos ou pardos e se sentem
discriminados. O mesmo vale para a inserção dos indígenas em escolas
públicas. Mas a tese é discriminatória.

Como fica o branco excluído socialmente? Mais de 72 milhões de
pessoas se encontram em situação de insegurança alimentar, o que
significa que dois em cada cinco brasileiros são privados de acesso à
alimentação em quantidade, qualidade e regularidade. E cerca de 22
milhões vivem abaixo da linha de pobreza, entre eles muitos brancos.
É errado, portanto, entender o negro como sinônimo de pobre. Sob esta
abordagem estatística, a aprovação do sistema de cotas e do Estatuto
da Igualdade Racial cria um Estado diferenciado para os negros, mais
uma reserva indígena e o gueto dos brancos marginalizados. A
injustiça vai além. Quem obtiver boa pontuação pode perder a vaga na
universidade para outros com desempenho fraco. A igualdade que se
prega gera desigualdade em outra ponta. Assim, a República regride ao
passado e se transforma em confederação de raças. Se os amarelos
gritarem por um pedaço, o País não poderá negar.

Dito isto, emerge a constatação: expande-se, no território, o
acirramento entre grupos e classes. O debate sobre cotas não é uma
questão pontual. Insere-se numa postura governamental que procura
cristalizar diferenças de classes, expandir conflitos entre áreas,
substituir políticas universais por projetos individuais, enfim,
acender a fogueira social. O acervo conflituoso tem lógica: aquecer o
ambiente para combustão. Não é à toa que, a todo instante, fontes
governamentais se referem de maneira pejorativa às elites, às quais
atribuem a mácula de responsabilidade pelo atraso do País, escondendo
o fato de que os governantes estão no topo da pirâmide social. Há
certa provocação na fala do presidente da República quando garante
que é mais fácil governar para os pobres, que não têm recursos para
pagar transporte e bagunçar em Brasília. Nos 27 Estados é forte a
presença do MST, cuja estratégia é a de promover ações pontuais em
espaços críticos com deliberada intenção de lembrar que existe, é
atuante e faz pressão. Até os recuos táticos são combinados. Na
quadra eleitoral, por exemplo, deve permanecer quieto para não
atrapalhar a campanha de Lula.

Não se discute o fato de que a dinâmica social carece de movimentos
fortes. Nos últimos 30 anos, depois do ciclo de chumbo, a sociedade
trilhou o rumo da organicidade. Os primeiros passos foram conduzidos
por partidos, como o MDB, alargando-se com a criação de novos entes,
entre os quais o próprio PT, expressão maior do oposicionismo nos
anos 80 e 90. Milhares de entidades ingressaram no curso da
descompressão social, passando a atender às demandas de grupamentos e
de pressões expandidas por ocasião da Constituição de 1988. A partir
daí se criou uma linha divisória entre ativistas sociais e
sindicalistas, passando aqueles a criticar as forças produtivas,
considerando-as fator de destruição. Nessa moldura, o PT chegou ao
poder com o compromisso de ampliar a base social, abrindo condições
para acesso aos direitos individuais e sociais.

Com a crise o meio-de-campo ficou embolado e o PT, enroscado.
Implantando a ortodoxia macroeconômica, o governo satisfez gregos e
desagradou a troianos. Hoje, no meio da encruzilhada, encontram-se
tanto demandas satisfeitas como as por satisfazer, oriundas das
margens sociais e dos movimentos. A estes o governo acena com
políticas compensatórias, às vezes plenas de recursos, e ações
afirmativas, algumas com clara intenção de purgar pecados. Tem alívio
quando aconchega bolsões sociais insatisfeitos. Isso explica a
abertura dos cofres para o assistencialismo puro e o incentivo a
programas para redução de disparidades. Em contraponto, formam-se
castas dentro dos conjuntos privilegiados. Retrato em preto-e-branco:
cotas, reservas de mercado, substituição de etnia por raça, que
passaria a usufruir direitos jurídicos, elogio à pobreza e crítica à
riqueza deixam o Brasil longe da comunhão de esperanças e do conceito
de nação. No mais, a lição do sábio da advocacia brasileira Goffredo
da Silva Telles Junior, de 91 anos: "O reino da eqüidade perene não é
mesmo deste mundo, o que não impede que o imperativo categórico do
espírito mantenha o homem na sua interminável procura."

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