A cabeçada metafísica
O que deu na cabeça de Zinedine Zidane? A pergunta vai ser carregada
pelos anos futuros por quem gosta de futebol.
Como alguém que joga futebol como quem dança, que corre pelos campos
como quem passeia, que dá chapéu em craque, que dribla com prazer e
graça, que com braços e pernas longas faz gestos que seriam
desengonçados se não fossem naturalmente elegantes, pode cometer tal
desatino inesperado e surpreendente?
Depois da derrota do Brasil restava torcer por Zidane. Com seu sangue
argelino, seu charme francês, ele era o que restava a apreciar nessa
triste Copa de 2006. Resumo de uma França que se diversifica, que
começa a aceitar imigrantes como filhos da Pátria, para os dias de
glória ou luto, que tem uma seleção tão negra quanto as nossas. Quase
mais. E que tinha um capitão nascido em Marselha, filho de Argelino.
Nada mais próprio e atual.
O futebol é puro mistério, um jogo coletivo definido frequentemente
por estrelas individuais. A bola procura pelos seus reis, é súdita,
dócil. Essa é a magia que vale a pena apreciar, mesmo que o
espetáculo acabe cravando-lhe no peito sua própria derrota. Bárbara
Heliodora, crítica de teatro do Globo, contou outro dia no Canal 100
que viu o gol de placa do Pelé, aquele que criou a expressão. Foi no
Maracanã, ele saiu da área do Santos, driblou tudo, driblou todos,
atravessou incontrolável todo o gramado e fez um gol inesquecível
contra o fluminense, comemorado depois com uma placa. Até a torcida
tricolor aplaudiu. Confesso que certas jogadas de Zidane foram tão
bonitas, no jogo contra o Brasil, que se não fosse minha dor e meu
espanto também teria aplaudido. Admito que as revi, quando a dor
amainou.
O bom de perder a Copa nas quartas de final é poder ver o final sem
maiores aflições. Hoje poderia ganhar quem fosse; que ganhasse o
melhor. Ontem, o resultado já estava dado: aos portugueses, o troféu
do quarto lugar, aos donos da casa, a honra do terceiro. Hoje, duelo
de dois campeões. Jogaço! A França jogou melhor, a maior parte do
tempo. Até que subitamente, sem qualquer aviso prévio, o mestre da
elegância virou um touro, e com sua cabeça como arma rumou implacável
contra o peito do adversário, contrariando regras, inventando um
lance inexistente. Como uma Maria Antonieta voluntária, que escolhe
seu destino, perdeu a cabeça, a coroa, a majestade. Homens gostam de
reagir a estes espantos, dizendo coisas de ofender as mulheres:
-Futebol é assim mesmo, tem porrada. Está pensando que é um jogo de
moças?
O intrigante não foi nem a agressão, mas sua estranha escolha taurina
de reagir a não-sei-que dito em seu ouvido por Materazzi.
O melhor jogador da Copa de 2006? Honestamente? Foi Zinedine Zidane.
Mas esse registro será apagado. Destronado ele desceu para o
vestiário, cabeça pendendo no peito, imagem desfeita, derrotado. Da
Copa de 2006 ficam algumas tristezas e uma dúvida inquietante: o que
deu na cabeça de Zinedine Zidane?