O Estado de S. Paulo
10/7/2006
Jogos de futebol, como quaisquer jogos, inclusive o político,
expressam as sociedades em que estão inseridos. Se uma sociedade se
apresenta com vigor, com ânimo, com decisão e com valores, sua equipe
nacional tenderá a reproduzir essas mesmas virtudes. Se, ao
contrário, essas virtudes se encontrarem em crise, uma equipe estará
ainda mais propensa a reproduzir uma crise de fundo moral. Nem aquém,
nem além dos valores de sua sociedade, a equipe brasileira se mostrou
uma infeliz reprodução dos impasses que estamos vivendo.
O desânimo - Os jogadores brasileiros apresentaram-se sem ânimo, sem
sentido de conjunto, como se a alma de cada um não estivesse ali
envolvida. Poder-se-ia talvez dizer que havia uma dissociação entre a
alma e o corpo, este se movimentando ritualmente, enquanto aquela
parecia estar envolvida em outras questões, como se toda uma nação
não estivesse neles apostando. Jogadores que não correm como
deveriam, que não se movimentam adequadamente, mostram o quanto estão
dissociados daquilo que estão fazendo. No jogo político temos uma
atitude semelhante, quando observamos as ações de parlamentares que
dizem uma coisa e fazem outra, declaram representar o bem comum e
agem segundo o pagamento que recebem de mensalões e valeriodutos. Ou,
ainda, temos a dissociação, que beira a esquizofrenia, entre um
partido que diz defender a ética na política e se compraz com a sua
própria corrupção, nem investigando internamente o que os seus
"companheiros" fizeram.
A falta de vigor - Outra característica da equipe brasileira foi a
falta de vigor, a falta de empenho de seus jogadores. O sentido de
conjunto desaparecia em proveito de algumas individualidades, que não
conseguiram nem dar o seu recado. Em equipes européias, os mesmos
jogadores, com outra organização e refletindo outras sociedades,
souberam se desempenhar a contento, não se resignando a uma espécie
de apatia. No momento de defenderem o Brasil, esses mesmos jogadores
se metamorfosearam, terminando por encarnar outros valores, os de uma
sociedade que não consegue reagir diante dos desmandos de seu atual
governo. De fato, como pedir vigor a uma equipe nacional de futebol,
se essa mesma sociedade se encontra apática diante da crise de
valores que a perpassa? O procurador-geral da República apresenta uma
bem fundamentada denúncia contra 40 políticos, alguns grandes figuras
do governo federal, e o próprio presidente da República demonstra o
maior afeto e reconhecimento por esses mesmos personagens, declarando
que se trata de meros "erros" e "desvios" de conduta. Onde se
encontram os caras-pintadas? Faltou a tinta da moralidade?
O primado dos interesses particulares - Os jogadores pareciam mais
preocupados com suas carreiras individuais e, sobretudo, com os seus
dividendos em termos de venda de imagens do que com o país que
deveriam representar. Jornais relatam a relação de empresários com os
jogadores, tratando de negócios em plena temporada do que deveria ser
uma concentração. Jogadores estariam mais preocupados com os seus
lucros, com os seus dividendos futuros, do que com o bem coletivo.
Tudo indica que o egoísmo de alguns terminou preponderando sobre o
sentido de conjunto. Não deixa de ser escandaloso o salário que
recebem se medidos não apenas em relação à média salarial brasileira,
mas, principalmente, em relação aos seus resultados. Seus contratos
deveriam ter uma cláusula do seguinte tipo: conforme os resultados
forem sendo atingidos, as suas remunerações respectivas seriam
correspondentes. Os maiores valores seriam progressivos, de acordo,
por exemplo, com a passagem para a semifinal e para a final. O
contrato poderia inclusive conter uma cláusula de ressarcimento. O
que não pode é que o Brasil fracasse e eles partam de bolsos cheios.
Não haveria também aqui uma analogia com a situação atual, em que
certos setores sociais, econômicos e políticos agem segundo o mais
estrito interesse particular, a sua visão não ultrapassando a
dimensão dos seus respectivos narizes?
A falta de liderança - Os brasileiros encantaram-se com a garra do
Felipão e menosprezaram a apatia de Parreira e Zagallo, símbolos,
neste sentido, de um Brasil que não dá certo. Psicologicamente, poder-
se-ia dizer que eles apresentaram sintomas de depressão, mais
especificamente de melancolia. Como pode uma equipe liderada por
melancólicos dar certo, principalmente num esporte que exige ânimo,
vigor, espírito de luta e disposição de vencer, em que abatimentos e
hesitações não podem ter lugar? Na macrossociedade observamos um
fenômeno semelhante, quando constatamos que a nossa figura
presidencial se compraz consigo mesmo, utilizando a esmo bravatas e
se gabando de inovações e iniciativas das quais não é o autor. O
"nunca antes" revela um uso demagógico das palavras, uma tentativa de
enganar que tem seu correspondente na ausência de decisão do
treinador da equipe brasileira. São "brasis" que deveriam ser
superados por um verdadeiro Brasil.
Parreira e Lula compartilham a mesma soberba - A equipe brasileira
chegou à Alemanha como virtual vencedora, como se não tivesse de
fazer maiores esforços do que mostrar algumas individualidades
reconhecidas internacionalmente. Os jogos estavam, por assim dizer,
vencidos antes de serem jogados. O jogo era um detalhe, uma
contingência da realidade que não teria nenhum valor, quando os
telespectadores (todos nós) estavam esperando com emoção, com
coração, que o Brasil se fizesse efetivamente representar, se
fizesse, aos olhos do mundo, um vencedor. A auto-estima seria
ressaltada e valorizada. Ora, o que esperar de uma equipe que reflete
um presidente omisso e irresponsável pelo feito por seu governo e seu
partido, jactando-se de ter realizado em quatro anos mais do que em
toda a História do Brasil? A soberba paga o seu preço.