A França e a cultura dos povos vencidos
A velha França mais uma vez dá ao mundo uma lição de como conviver
dialeticamente com as raízes periféricas da cultura, sem perder a
centralidade. Esse país ainda representa o melhor do humanismo que
resta na Europa, o que não é pouco, diante da crescente intolerância
liderada pela atual doutrina Bush. Apesar do passado colonial
turbulento - e das recentes graves tensões na política com os
imigrantes -, o país tem a sabedoria de manter em Paris o magnífico
Instituto do Mundo Árabe e os importantes Museus de Arte Asiática e
de África-Oceania. Agora foi a vez de Jacques Chirac, tido como homem
de direita e, muitas vezes, por inculto e superficial, inaugurar mais
um grande museu dedicado exclusivamente às “artes primeiras” - a
expressão é forma sutil de valorizar o que se origina dos povos
primitivos. O Quai Branly, erguido próximo à Torre Eiffel e não longe
do Arco do Triunfo, foge justamente da rota de mão única da História
escrita pelos vencedores. O seu edifício é descrito por Gilles
Lapouge como elegante e insólito, cercado por 18 mil metros quadrados
de jardins públicos em estilo de savana projetados por Gilles
Clement, um dos maiores paisagistas vivos. Com reservas técnicas de
mais de 300 mil objetos da Ásia, África, Oceania e América Latina, a
iniciativa teve forte apoio de Claude Lévi-Strauss, do alto dos seus
98 anos de cultura a serviço do respeito aos diferentes.
Fernand Braudel, outro celebrado intelectual francês, descreveu a
vida dos povos, desde tempos remotos até os últimos séculos, como uma
troca intensa através da ampla zona afro-eurasiana. Dizia ele que
“devemos reconhecer o papel limitado do nosso Ocidente na História,
como uma região entre outras; e saber que durante boa parte do seu
desenvolvimento ele ocupou posição periférica”, inclusive durante o
período da acumulação primitiva que conduziu ao capitalismo pleno. Os
europeus não criaram, portanto, nem o sistema econômico mundial nem o
capitalismo, embora os tivessem utilizado depois de maneira muito
competente. Nos séculos 15, 16 e 17 os núcleos principais de produção
industrial se encontravam na China e na Índia, que eram os grandes
centros do capital no mundo; e o Islã continuava a se expandir.
Apenas a ação colonial da Europa nas Américas e na África - delas
sangrando enormes quantidades de ouro, prata e escravos - explicou
seu peso na economia mundial, pressionada que estava por seus enormes
déficits no comércio de mercadorias com a Ásia. Para Braudel, a Ásia
continuou sendo o lugar onde a cultura florescia, especialmente a
islâmica e a chinesa. O centro de gravidade econômico mundial só se
deslocou totalmente para o Ocidente no século 19.
No entanto, apesar de todas essas evidências sobre interdependências
e fortes dinâmicas extra-européias, há uma firme visão eurocêntrica
na História divulgada no lado de cá, colocando-nos como o locus maior
do progresso da civilização, construtores do topo do mundo
científico, militar e político nos últimos quatro séculos. Também
para Gunther Frank, a dominância da Europa e do Ocidente parecem
eventos muito recentes. O que houve foi uma intensa interdependência,
através da qual a mais-valia foi sendo transferida - por uma
combinação de força bruta com competência - entre zonas hierárquicas,
implicando uma certa divisão internacional do trabalho. Cícero, o
imperador romano, já mencionava os problemas políticos nas fronteiras
com a China como causadores de pânico financeiro em Roma. E Plínio
alertava as mulheres romanas sobre o déficit da balança de pagamentos
causado por seus vestidos luxuosos feitos com tecidos de seda
importados da China.
Artes preciosas e ruínas monumentais das culturas vencidas enfeitam
os salões dos imensos museus europeus, especialmente em Londres e
Paris. É bom não insistir em investigar os estranhos caminhos pelos
quais todas essas peças da cultura “primeira” acabaram chegando às
capitais européias, muito menos a quem elas pertenciam ou de quem
foram “capturadas”. Mas, no momento, esta questão não importa tanto.
É útil lembrar que foi a Conferência de Paz de Paris de 1919 que
definiu a nova partilha do mundo pós-1ª Guerra e fez a transição das
velhas e explícitas práticas coloniais para os novos esquemas
ligeiramente mais sutis de dominação cultural e territorial. Woodrow
Wilson, então, disse que a Itália deveria ficar fora de certas
partilhas porque carecia de experiência para a administração de
colônias. Foi contraditado por Lloyd George: “Mas os romanos foram
muito bons governadores de colônias.” Já Gaston Domergue, vice-
presidente do comitê oficial francês para as metas coloniais,
reclamou: “Precisamos de um império colonial para exercitar a vocação
civilizadora da França, no interesse maior da comunidade.”
O fato é que a França é um país curioso e especial, exercendo suas
contradições com muito charme. Herdeira de toda a prepotência
napoleônica - mas talvez por não ter tido um período hegemônico
nítido e longo quanto teve o Reino Unido e, agora, os EUA -, ela pode
dar-se ao luxo de posar como uma admiradora sincera dos povos
humilhados e esquecidos, sufocados pela barbárie e violência da velha
Europa e do Ocidente em geral. Lapouge lembra bem que cada governante
francês tenta deixar seus traços numa grande obra de cultura em
Paris. Chirac está fazendo o mesmo com o Quay Branly: um grande museu
para as culturas vencidas. Nada mal para temperar a arrogância dos
vitoriosos do mundo global. Até porque já não é impossível antever um
novo eventual ciclo de esplendor asiático, com Islã e tudo mais. Já
América Latina e África vão continuar na fila.
Gilberto Dupas é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e
Internacionais (IEEI), coordenador-geral do Grupo de Conjuntura
Internacional da USP e autor de vários livros, entre os quais O Mito
do Progresso (Editora Unesp)