As ações afirmativas não ameaçam a ordem, apenas fazem avançar modestamente a justiça
DOIS MANIFESTOS dividiram a sociedade brasileira: um contra a definição de cotas para negros e índios nas universidades e a reserva de vagas para minorias no serviço público; outro, a favor. Nos dois manifestos, impressionam a falta de argumentos e a ausência de propostas alternativas dos adversários das duas políticas de ação afirmativa, a não ser a reafirmação da universalidade dos direitos -da igualdade de todos perante a lei.
Esse é um princípio fundamental da nossa Constituição, mas, sendo ela um documento do século 20, não é um princípio vazio de conteúdo social. No século 18, a igualdade de todos perante a lei representava um grande avanço político quando a burguesia liberal lutava contra o Estado absoluto: era a luta de uma classe média em ascensão contra uma aristocracia montada em cima de privilégios legais.
Depois disso, porém, o mundo avançou politicamente. Percebeu-se que não bastava a igualdade perante a lei, era preciso também a igualdade de oportunidades entre as classes sociais e entre as raças.
No Brasil, preocupamo-nos apenas com a igualdade social. Alguns avanços foram alcançados nesse campo, embora o país continue um dos mais desiguais do mundo. No plano racial, porém, fomos incrivelmente displicentes. Apoiados no fato de que somos um país mestiço -e, de fato, somos-, supusemos que tínhamos aqui uma democracia racial -ou quase. Não a temos -nem quase. Caetano Veloso estava certo quando concordou que a democracia racial no Brasil era um mito e acrescentou: "Mas um belo mito".
De fato, é um belo mito, no sentido de nos fazer orgulhosos de nossa mestiçagem e de nos levar a rejeitar toda discriminação racial. Mas a rejeição é teórica. Na prática, a discriminação no Brasil é fortíssima, conforme todas as pesquisas comprovam. Se o Brasil é injusto no plano social, é ainda mais no racial.
Nas universidades, por exemplo, há apenas 2% de negros estudantes e apenas 1% de negros docentes, embora eles constituam 45% da população brasileira.
É por essa razão que há alguns anos surgiu o movimento no sentido de implantar no Brasil iniciativas de ação afirmativa. Quando o movimento começou, os nacionalistas de ocasião disseram que isso era invenção americana; alguns hesitaram em lembrar o triste argumento do branqueamento gradual; outros apontaram as dificuldades em distinguir as raças no Brasil; a maioria dos contrários argumentou que a definição legal de raças só agravaria a situação.
Por quê? Porque tornaria as diferenças raciais, que no Brasil são muitas vezes imprecisas, claras e, por essa razão, poria em cheque a "paz racial" ou a "harmonia natural" que regeriam as relações de raça no país. Vemos, assim, que há outras versões do mito da democracia racial: versões que colocam a ordem, transmutada em paz e em harmonia, no centro da questão. O conservadorismo de nossa sociedade reaparece assim com toda a força.
Além dos argumentos liberais da igualdade perante a lei, também os argumentos da defesa da ordem ressurgem no debate. A paz social é necessária, mas não é perpetuando a injustiça que ela será alcançada.
Não basta que se almeje "um Brasil no qual ninguém seja discriminado", como diz o manifesto contra. É preciso ter a coragem que 30 universidades brasileiras já tiveram e começar a adotar ações afirmativas contra a discriminação. As ações afirmativas que estão sendo propostas não são apenas justas: são razoáveis. Elas não ameaçam a ordem, apenas fazem avançar modestamente a justiça.
Têm razão os subscritores do manifesto a favor quando afirmam que o documento contra "parece uma reedição, no século 21, do imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro".