""São duas cidades, como dois exércitos inimigos, uma diante da outra. Uma cidade fitando a outra cidade."
Uma é "a cidade de miséria", que "está diante de nós, aos nossos olhos, em face à nossa cidade, em posição de combate".
A outra é "a cidade mais visível, que contempla a miséria e dorme confiante do inimigo que cresce".
O alerta, do poeta, editor, jornalista e empresário Augusto Frederico Schmidt, está em "Figuras do Brasil - 80 Autores em 80 anos de Folha" (Publifolha), com o título "As Duas Cidades". É de 1948, quase 60 anos atrás. E deu no que deu.
Uma cidade, a deles, os miseráveis -ou "inimigos que crescem"-, foi-se ampliando, "em posição de combate", com as levas de migrantes empurrados pela fome, pela falta de escola, de saúde, de dignidade.
A "outra", a nossa, os que comemos e estudamos, construiu muros, portões e grades, com seguranças e cães assassinos.
E chegamos aonde chegamos. Na cidade deles, os mais espertos viram chefões, comandam o tráfico, vão para as cadeias e subornam as autoridades. Na nossa, os mais espertos viram autoridades, estimulam o tráfico, são subornados. E não vão para as cadeias.
Nessa guerra, tão anunciada e de motivos tão óbvios, os maus policiais matam inocentes, os bons são mortos pelos bandidos, com o Estado segurando o desenvolvimento e os empregos e distribuindo bolsas-esmolas, enquanto o Estado dentro do Estado se avoluma e comanda a guerra a partir das cadeias. Com celulares modernos e baterias que se recarregam misteriosamente para deflagrar atentados contra policiais, civis, prédios públicos, veículos privados.
Se depois de 60 anos do alerta de Augusto Frederico Schmidt chegamos a isso, a grande incógnita é: onde estaremos nos próximos 60?