Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 03, 2006

Excessos da imaginação autoritária Artigo - Demétrio Magnoli

O Globo
2/7/2006

No alto da página de dedicatórias de “Desafios do Brasil na era dos
gigantes” (Rio de Janeiro, Contraponto, 2006), de Samuel Pinheiro
Guimarães, encontram-se os nomes do presidente Lula e do chanceler
Celso Amorim, os responsáveis pela nomeação do autor para a
secretaria-geral do Itamaraty. As referências históricas desse tipo
de prática são os artistas do Renascimento, que dedicavam suas obras
aos mecenas, e a URSS de Stalin, na qual intelectuais prestavam
homenagem ao Guia Genial dos Povos.

O ato inicial de negação da modernidade sugere uma comportada
narrativa oficialista. No lugar disso, o que vem depois é a exposição
da alma escondida de uma política externa que, felizmente, ainda teme
se desvencilhar por completo da tradição de Rio Branco. Ao longo de
455 páginas, Samuel Pinheiro oferece um discurso dirigido aos irmãos
de fé no qual delineia um programa ultranacionalista de construção do
Brasil Potência.

A “elite que governa esse país há 500 anos”, na caricatura recorrente
dos discursos de Lula, alcança a condição de paradigma teórico no
pensamento do secretário-geral. Da Colônia à Nova República, a
história nacional seria uma sucessão infindável de maldades cometidas
pela “elite branca” contra as massas pobres, “negras e mestiças”. A
narrativa, apesar das aparências superficiais, não se filia ao
pensamento de esquerda pois não acredita na força criativa das lutas
sociais. A tal elite, com o auxílio de aparatos ideológicos como a
mídia e as igrejas, incorpora ao seu campo político os imigrantes,
classes médias e trabalhadores organizados. No lugar de conflito
social, o que existe é opressão racial.

Samuel Pinheiro não admite meios-tons: “O destino brasileiro será de
grandeza ou caos.” O caminho para a redenção se encontra numa reação
à “concentração de poder mundial”, pela via da construção de um
Estado forte que dirige o desenvolvimento nacional nos campos da
economia, da tecnologia, da política e da cultura. As estratégias
redentoras se baseiam na associação entre o Estado e grandes empresas
nacionais, na orientação nacionalista dos meios de comunicação e do
sistema educacional e na edificação de um poderio militar capaz de
enfrentar “ameaças globais”. Os modelos ocultos abrangem o Japão
Meiji, a Itália de Mussolini e a China atual. O modelo explícito é o
Brasil do general Ernesto Geisel. Não é fortuito que ocasionais
saudações à democracia apareçam entremeadas com iracundas condenações
da “democracia formal”.

Que ninguém procure consistência teórica: os conceitos oscilam ao
sabor das conveniências argumentativas. O sistema internacional,
definido como “condomínio” de potências liderado pelos EUA num ponto,
apresenta-se conflitivo e “crescentemente multipolar” em outro.
Contudo, as “ameaças” principais ao Brasil são, sempre, a ação das
empresas multinacionais e a “hegemonia” americana, que se exerceria
por meio das instituições políticas e econômicas internacionais e dos
regimes multilaterais de controle de armamentos. O Brasil Potência
desenhado pelo autor cumpriria seu “destino” de grandeza liderando um
bloco político sul-americano, representando-o no Conselho de
Segurança (CS) da ONU.

Na sua declaração de método, Samuel Pinheiro proclama o primado
absoluto da política. Munido dessa chave mágica, ele submete as
realidades à sua vontade — ou melhor, à vontade suprema de um Estado
brasileiro que tudo pode. A unidade política sul-americana será
alcançada por meio de concessões comerciais e investimentos
brasileiros. A Argentina renunciará à sua visão de mundo para adotar
a do Brasil Potência. No fim do arco-íris, o Brasil será guindado ao
Conselho de Segurança pelo desejo unânime da América do Sul...

Os cínicos acharão graça, mas nem tudo é divertido. Samuel Pinheiro
interpreta a “cláusula democrática” do Mercosul e a adesão brasileira
ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) como expressões de uma
rendição do país aos desejos de Washington, atribui a criação de
reservas indígenas em áreas ricas em minérios às maléficas pressões
estrangeiras e sugere que a proteção dos direitos humanos é uma “ação
tática das grandes potências em defesa de seus próprios interesses
estratégicos”.

No Itamaraty, o secretário-geral se notabilizou por, encarnando a
persona de um mestre-escola, conduzir “sabatinas orais” com seus
subordinados diplomatas. Em seu livro, ele trata os leitores como
platéia de deferentes aprendizes e, desafiando as normas elementares
do intercâmbio intelectual, esparge incontáveis afirmações
conclusivas sobre toda a gama de assuntos sem jamais inserir uma
única referência bibliográfica específica destinada a corroborar as
suas “verdades”.

A figura do atual secretário-geral é fruto de um acaso histórico. No
ocaso do segundo mandato de FHC, ele concedeu uma rumorosa entrevista
com críticas à Alca. Reagindo injustificadamente, o Itamaraty impôs a
“lei da mordaça” ao corpo diplomático. Isso foi suficiente para
transformar, aos olhos de Lula e da opinião pública de esquerda, o
então obscuro diretor do Instituto de Pesquisas de Relações
Internacionais em profeta de uma nova doutrina diplomática.

O livro do profeta seria irrelevante se ele não tivesse sido galgado
à posição de número 2 do Itamaraty. Nas atuais circunstâncias, o
lançamento editorial cumpre o serviço público de soterrar a hipótese
de uma candidatura do secretário-geral à chancelaria.

DEMÉTRIO MAGNOLI é doutor em Geografia Humana pela USP e editor de
Mundo — Geografia e Política Internacional.

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