Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 03, 2006

Esquerda e populismo na América Latina:: artigo - Marco Aurélio Nogueira


O Estado de S. Paulo
2/7/2006

O biênio 2005-2006 será marcado na América Latina (AL) pela
realização sucessiva de eleições em quase todos os países. Os
resultados conhecidos até agora e as tendências em curso indicam que
a região se está dividindo entre governos democrático-liberais com
maior ou menor presença de forças de esquerda, um novo populismo e
governos liberal-conservadores. Uma tendência, porém, se destaca: a
da constituição de governos mais "sociais" que "institucionais", ou
seja, mais dedicados ao diálogo com o povo pobre e com diferentes
movimentos sociais do que à construção de instituições capazes de
governar sociedades que se estão tornando mais complexas e dilaceradas.

A AL já não se acomoda nas roupas estreitas que lhe foram impostas
pelas políticas neoliberais de ajuste e estabilidade. Há mais
inquietação e mais movimentação popular - e, paradoxalmente, mais
despolitização. Estará caminhando, de fato, para a esquerda? E se
estiver, para qual esquerda? Dado o panorama multicolorido, não
podemos aproveitar muito da polêmica dicotomia sugerida recentemente
pelo sociólogo mexicano Jorge Castañeda entre uma esquerda "boa" -
moderna, reformista, autocrítica e internacionalista - e uma esquerda
"má", populista, fechada e nacionalista.

A atual efervescência política latino-americana encontra raízes na
estrutura das sociedades da região e reflete tanto a sua modernização
acelerada quanto a sua globalização.

Sociedades com desigualdades lancinantes, pobreza expressiva e muita
concentração de renda e poder são "naturalmente" explosivas e sempre
se mostrarão sensíveis a governos que emitam sinais de "vontade",
"determinação" e "disposição para o reconhecimento". A própria
disputa eleitoral - que se estabilizou na imensa maioria do
continente durante as últimas décadas - impulsiona a ascensão de
movimentos mais populares, até mesmo porque exige a integração das
massas. Na AL, além do mais, devemos considerar também os efeitos
negativos das políticas "market oriented" seguidas por muitos
governos. A ênfase no ajuste fiscal, na estabilidade monetária e na
reforma do aparato administrativo estatal como caminho para a
melhoria das condições de vida não se revelou produtiva. Ao se
combinar com uma modernização frenética e com baixo crescimento
econômico, tal ênfase prolongou e agravou a pobreza, devastando as
estruturas sociais e abrindo passagem para o ressentimento social e a
indiferença em relação às instituições políticas e à democracia
representativa.

Em muitos países se sentem os sintomas de uma crise dinâmica, que
espelha a falência do sistema político tradicional, a baixa
efetividade da democracia e o cansaço dos cidadãos com os partidos e
a classe política. Mesmo assim, muitos governos seguem políticas
públicas moderadas e atuam mais para "administrar o sistema" que para
modificá-lo. Poucos são contrários a uma maior integração das
economias e dos mercados capitalistas da região. No Chile, Michelle
Bachelet se apóia em dois partidos tradicionalmente antagônicos, o
Socialista e o Democrata-Cristão, para dar continuidade a políticas
de diminuição da pobreza sem questionar o Estado liberal. Na Bolívia,
Evo Morales enfrenta uma situação de ingovernabilidade histórica e de
afirmação étnica expressiva, atuando mediante compromissos com
movimentos indígenas importantes, que lhe dão sustentação. A força
demonstrada por López Obrador no México também tem que ver com esse
quadro de crise e cansaço. A dinâmica continental não é mais a da
manipulação do povo por políticos tradicionais, mas sim a de uma nova
identificação entre os pobres e o voto.

Não é possível simplesmente catalogar essas experiências como "boas"
ou "más", de esquerda ou populistas.

A idéia de reforma e de mudança não é a que melhor qualifica a
esquerda. Nem sequer a disposição de hostilizar o "sistema" serve
para distingui-la da direita. O que importa é saber como se chega ao
final, quer dizer, qual projeto de sociedade se tem em mente e com
quais forças sociais se imagina concretizá-lo. É preciso ver se a
atuação mais ou menos reformadora dos governos implicará a criação de
novos e melhores incentivos à democratização e, sobretudo, ao aumento
das possibilidades de avanço em termos de "emancipação social".

A vitória de candidatos mais progressistas nem sempre é acompanhada
de maior probabilidade de que se cumpram as promessas de mudança e de
justiça social. É grande o risco de que programas de reforma sejam
bloqueados e depois abandonados. Muitos governos vistos como de
"esquerda" são ambíguos e adotam discursos e procedimentos que pouco
têm que ver com orientações de esquerda. A "Constituição Bolivariana"
de Hugo Chávez não se proclama anticapitalista. O presidente Lula não
se cansa de declarar que não é de esquerda e seu governo não se
destaca por realizações sociais expressivas, nem se empenhou para
reformar o Estado, o sistema político ou a administração pública,
reiterando, ao contrário, todas as "más tradições" brasileiras.

Governos reformadores que não se preocuparem com a construção de
instituições democráticas que articulem representação e participação
tenderão a se imobilizar com o passar do tempo e a derivar para
crises políticas mais ou menos intensas. As próprias sociedades
latino-americanas - que são dinâmicas e complexas, e não somente
pobres - não avançarão sem Estados administrativos reformados e sem
sistemas políticos bem estruturados, até porque estão hoje imersas
numa grave crise de subjetividade, ou seja, sem sujeitos políticos
capazes de fazer com que os dilemas sociais se convertam em agenda
política.

Sempre será o caso, portanto, de avaliar em que medida eleições e
processos eleitorais estão a contribuir para que esse quadro se
altere em sentido positivo.

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