Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 09, 2006

Embaralhamento de Lula : Mailson da Nóbrega Estado

A responsabilidade que Lula adota na gestão macroeconômica nem sempre
é coerente com o discurso, no qual ele pode contradizer os rumos e
mostrar-se desinformado sobre aspectos cruciais do processo. Como ele
não é dogmático nem ideológico, tais falas costumam ser mais tarde
negadas ou esquecidas.

Agora, ele criticou as regras sobre endividamento público (Estado,
30/6/2006). "Praticamente todas as prefeituras estão proibidas de
receber financiamento porque estão endividadas. Então fica a pior
situação do mundo: você sabe que a cidade precisa, você tem dinheiro
disponibilizado para fazer financiamento e você não pode fazer porque
tem um monte de embaralhamento (sic) jurídico que não permite usar
esse dinheiro". O pior é "você saber que não pode emprestar porque
tem um empecilho que não permite emprestar".

Ao contrário do que diz o presidente, é bom que seja assim. Significa
que as restrições institucionais ao endividamento irresponsável estão
funcionando.

Embaralhar, segundo o Aurélio, é misturar, confundir. Por isso, Lula
reclama de um dos alicerces da política econômica, isto é, os limites
ao endividamento público, cujo tamanho é uma das causas dos juros
altos. Nossa dívida pública bruta, de 75% do PIB, perde apenas para
as da Turquia e da Argentina entre os países em desenvolvimento. No
Chile, que tem a menor taxa de juros da América Latina, essa
proporção é inferior a 10%. Algo a ver?

Os esforços para limitar esse endividamento remontam ao período
militar, quando os empréstimos aos Estados e municípios passaram a
depender de autorização do Senado, o que foi preservado pela
Constituição de 1988. Ao Conselho Monetário Nacional (CMN) cabe fixar
as condições que os bancos devem observar nas respectivas operações.

Essas normas continham inúmeras exceções, que desconsideravam certos
empréstimos, como os concedidos pelo BNH e pela Caixa Econômica,
vinculados a programas habitacionais e a saneamento básico. Os furos
eram tantos que o CMN estabeleceu tetos para empréstimos do sistema
financeiro ao setor público, de modo a controlar globalmente o
endividamento estadual e municipal.

As regras se tornaram mais rígidas nos anos 1980, na esteira das
crises fiscal e da dívida externa. Tinha-se ido longe demais nas
exceções. Mesmo assim, não foi possível evitar algumas torneiras,
como a dos bancos estaduais e a concessão de créditos da União para
salvar Estados e municípios do colapso financeiro. O endividamento
atingiu níveis explosivos, o que obrigou o governo FHC a enfrentar de
vez a situação. As normas do CMN estão hoje corporificadas na
Resolução nº 2827, de 2001.

A renegociação das dívidas dos Estados e municípios com a União,
garantidas por uma parcela das suas receitas, e a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) constituíram avanços notáveis no
sentido de coibir o endividamento irresponsável dos governos
subnacionais. A LRF proibiu a União de financiar esses governos e
atribuiu ao Senado a competência para estabelecer limites ao seu
endividamento total.

A dificuldade de conceder empréstimos aos municípios para obras de
saneamento não é para ser lamentada. É uma prova de que as normas são
sólidas. A idéia de limitar o endividamento público nada tem de
neoliberal nem obedece a regras ditadas pelo FMI, como especialistas
em habitação e saneamento têm dito.

O certo não é, como sugere o Presidente, voltar aos tempos das
exceções, mas preservar as conquistas institucionais que livraram o
Brasil de desperdícios do passado. Muito da credibilidade de que ora
goza o País deriva dessas conquistas, particularmente da LRF. Há a
percepção de que o chefe do governo perdeu o poder de distribuir
benesses e faturar eleitoralmente com o endividamento público. Se
Lula mandar fazer exceções à Resolução 2827, restarão duas outras
barreiras, a das resoluções do Senado e a LRF. De quebra, colheria um
indesejável abalo na confiança dos investidores.

Em vez de condenar essas conquistas, Lula poderia aconselhar os
prefeitos a estabelecer prioridades, reservando sua capacidade de
endividamento para o saneamento básico. Seja como for, felizmente é
baixo o risco de ele persistir no erro e de angariar apoio da opinião
pública para promover um retrocesso na LRF e nas normas sobre
endividamento de Estados e municípios.

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