Valor Econômico
12/7/2006
Causou grande espécie, no debate econômico brasileiro, a sugestão de
que os investimentos do setor público fossem retirados do cálculo do
superávit primário. A proposta, inicialmente feita no governo FHC
pelo então ministro do planejamento, José Serra, foi imediatamente
demonizada porque se considerou que seu objetivo era relaxar o
esforço fiscal. Discutida num momento de crise aguda, a proposta de
Serra morreu no nascedouro.
Nos anos seguintes, diante da queda vertiginosa dos investimentos do
governo em infra-estrutura, o assunto veio à baila e acabou
resultando, já na gestão Lula, na instituição do Projeto Piloto de
Investimento (PPI). O PPI é justamente a retirada, do cálculo do
superávit primário, de um determinado bloco de investimentos
escolhidos de forma discricionária pelo governo - para este ano,
foram R$ 3 bilhões. Não se conhece ainda uma avaliação detalhada da
experiência, mas sabe-se que, concebida sob forte desconfiança da
equipe econômica, ela não alavancou os investimentos necessários para
melhorar a infra-estrutura do país.
Eis que, agora, dois economistas do IPEA - Alexandre Manoel Angelo da
Silva e Manoel Carlos de Castro Pires - resolveram fazer um
interessante e revelador estudo sobre a possibilidade de o governo
aumentar os investimentos públicos, mantendo a austeridade fiscal e
assegurando a sustentabilidade da relação entre dívida pública e PIB.
Trata-se de uma bela contribuição ao debate, especialmente, em um ano
eleitoral.
Numa rápida digressão, os dois economistas lembram que, nos anos de
inflação crônica, os governos mantinham a dívida pública sustentável
graças às receitas que apuravam com a senhoriagem. A perda de valor
da moeda ajudava sobremaneira o governo a reduzir suas despesas e
compromissos. Com o Plano Real, houve uma redução drástica nas
receitas de senhoriagem. No início do Real, o governo compensou isso
com as receitas da privatização.
Com a perda de ímpeto do processo de desestatização - a rigor, a
última grande privatização ocorreu em julho de 1998, com a venda do
Sistema Telebrás - e a debacle do regime de câmbio fixo, a dívida
pública explodiu, forçando o governo a iniciar o ajuste fiscal,
caracterizado pela geração de superávits primários nas contas
públicas. Desde então, o que se verificou foi o aumento da rigidez
orçamentária, além da contínua redução no volume de investimentos
públicos.
Em 1997, segundo dados do ministério do planejamento, as despesas
discricionárias da União chegaram a 22% do orçamento. Em 2003, caíram
para 11%. No caso dos investimentos do setor público consolidado, que
incluem as aplicações da União, Estados, Municípios e estatais, eles
recuaram de 4,2% do PIB, em 1998, para 3,5% do PIB em 2004 - a
tragédia é maior nos investimentos do governo federal (sem as
estatais), que caíram de 0,93% do PIB em 2000 para 0,50% do PIB no
ano passado.
Poupança em conta corrente ou superávit?
Simultaneamente ao corte dos investimentos, os governos FHC e Lula
elevaram fortemente a carga tributária. Esse modelo de ajuste fiscal,
embora tenha assegurado a sustentabilidade da relação dívida/PIB nos
últimos anos, parece próximo do esgotamento, pelo menos do ponto de
vista político. Na gestão Lula, as metas de superávit ainda foram
elevadas, criando restrições para o crescimento do PIB.
No estudo intitulado "Dívida Pública, Poupança em Conta Corrente do
Governo e Superávit Primário: Uma Análise de Sustentabilidade",
Angelo da Silva e Castro Pires propõem que a política fiscal passe a
perseguir, em vez de uma meta de superávit primário, uma meta de
poupança corrente do governo. Os dois economistas fizeram a proposta
após constatar, por meio de resultados empíricos obtidos a partir da
aplicação de mais de um modelo teórico, que é possível adotar o novo
conceito, mantendo a austeridade fiscal e, portanto, a
sustentabilidade da relação dívida/PIB.
A poupança em conta corrente seria calculada da seguinte maneira: o
total de tributos, subtraídos os gastos correntes (custeio,
transferências correntes/capital e inversões financeiras). "Esse
conceito difere do resultado primário tão-somente porque exclui o
investimento público líquido de seu cálculo", explicam os
pesquisadores do IPEA. Considerando-se, por exemplo, que, de janeiro
de 1999 a junho de 2005, o investimento médio do setor público
consolidado foi de 3,4% do PIB ao ano, excluindo-se esses
investimentos da meta de superávit, a poupança em conta corrente do
governo seria de 7,65% do PIB.
As simulações feitas por Angelo da Silva e Castro Pires mostram que,
num cenário em que a taxa de juros real é 12%, a trajetória da dívida
pública é insustentável tanto com a manutenção do atual superávit
primário (4,25% do PIB), quanto com a adoção da meta de poupança em
conta corrente. Com taxas de juros abaixo disso - o juro real hoje
está em torno de 10,3% -, o efeito dos dois instrumentos sobre a
trajetória dívida pública é muito parecido.
A vantagem da meta de poupança corrente é que ela permite reduzir de
forma mais acelerada a taxa de juros real e elevar a taxa de expansão
da economia, na medida em que contribuiria para aumentar dos
investimentos da economia. "Em virtude de não penalizar a elevação do
estoque de capital - um dos determinantes do crescimento econômico -,
o conceito de poupança em conta corrente do governo mostra-se
economicamente mais adequado que o de superávit primário", defendem
os dois economistas do IPEA. "Os resultados apresentados (nas
simulações) sugerem que a implementação de uma meta fiscal embasada
na poupança em conta corrente, com sucessivas elevações no
investimento público, não tornaria a política fiscal irresponsável
nem colocaria a relação dívida/PIB em uma trajetória explosiva."
Angelo da Silva e Castro Pires reconhecem que há riscos na execução
da proposta. Um exemplo: um governo mal-intencionado pode transformar
gasto corrente em investimento. Por isso, eles sugerem a inclusão de
cláusula na Lei de Responsabilidade Fiscal, instituindo punição
exemplar para quem fizer isso. Propõem também o monitoramento por
parte dos tribunais de conta.