Para saber sobre a vida de uma
celebridade, nada como as confissões
em sua correspondência
Duda Teixeira
Correspondências íntimas de pessoas famosas produzem um inevitável prazer voyeurístico. A leitura de cartas publicadas postumamente costuma despertar a reconfortante percepção de que cientistas, artistas ou heróis também têm seus momentos de fraqueza, como qualquer outra pessoa. Na semana passada, foi a vez de Albert Einstein ter a vida privada exposta ao mundo, com a divulgação de mais de 1 300 cartas enviadas pelo físico alemão a sua família. Os textos, escritos durante viagens feitas entre 1912 e 1955, quando morreu, foram doados pela enteada de Einstein, Margot, à Universidade Hebraica de Jerusalém, sob a condição de que fossem publicados apenas vinte anos depois de ela morrer – o que aconteceu em julho de 1986. Nas páginas, descobre-se um Einstein ainda mais mulherengo do que suas biografias anteriores mostravam. Ele conta abertamente a Elsa, sua segunda esposa, e a Margot sobre pelo menos seis amantes, mostra-se um pai preocupado com o filho Hans Albert, de seu primeiro casamento, e revela que seu próprio interesse pela teoria da relatividade, de sua autoria, estava em declínio. "Em breve eu estarei farto da relatividade. É o tipo de coisa que vai definhando quando se está demasiadamente envolvido", escreveu ele em carta de 1921 a sua mulher.
O interesse pela vida de Einstein se explica porque, muito mais do que um mero cientista, ele foi também uma celebridade. A partir de 1905, quando tinha 26 anos, passou a ser citado nas primeiras páginas dos jornais, a dar palestras em várias cidades e a freqüentar festas em sua homenagem. Após a I Guerra (1914-1918), com a paisagem européia destruída, Einstein tornou-se o depositário da esperança de dias melhores, um sinal de que o conhecimento humano poderia entender e transformar a realidade. "Einstein popularizou-se e conquistou um lugar simbólico de destaque", diz Alexandre Caroli Rocha, pesquisador de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "É compreensível que dados novos sobre ele sempre tenham gerado muito impacto."
A mesma regra vale para todas as celebridades: quanto maior é o hiato entre a imagem produzida socialmente e os fatos novos, maior o impacto no público. Um dos clássicos exemplos desse contraste ocorreu com a francesa Simone de Beauvoir, que formava um casal moderninho com o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Defensora do feminismo, ela se dava ao direito de possuir amantes, assim como Sartre também se sentia livre para ter outras relações. Até aí, nada de novo. A surpresa veio depois da morte de Beauvoir, quando foram reveladas cartas ao seu amante americano Nelson Algren. Nelas, a escritora conta que mandou fazer um robe de seda para que ele pudesse olhá-la lavando pratos com elegância. Prometeu ainda ser "fiel como uma esposa exemplar e convencional", uma posição inesperada para quem se esmerou em defender a autonomia da mulher. Outro exemplo de contraste entre a vida privada e o mito criado ocorreu com o escritor Carlos Drummond de Andrade. Seus poemas sempre derreteram o coração de muitos enamorados. Imaginava-se que sua musa inspiradora seria sua mulher, Dolores Morais, com quem se casara em 1925. Em 1994, o jornalista Geneton Moraes Neto publicou a transcrição de fitas secretas gravadas pela amante Lygia Fernandes, 25 anos mais nova que Drummond. Lygia, como se percebeu depois, foi a musa inspiradora de muitos de seus versos.
O maior entrave para a divulgação de correspondências pessoais costuma ser a resistência das famílias, que tentam preservar a própria intimidade e a memória de seus parentes ilustres. Com o passar dos anos e a morte dos envolvidos, essa defesa perde o sentido e as cartas se tornam documentos puramente históricos. Não há razão para acreditar que, agora, o lado masoquista do escritor irlandês James Joyce na relação com sua mulher, Nora Barnacle, afete o brio de seus descendentes, assim como os comentários levianos de Mozart sobre as mulheres não têm nenhum impacto entre os apreciadores de sua música.
O deleite provocado pela leitura de suas cartas e diários, contudo, persiste porque eles revelam uma época em que a intimidade era um tesouro sagrado, que jamais poderia ultrapassar as paredes do lar. É uma realidade oposta à que ocorre hoje em dia, quando detalhes da vida privada são escancarados em sites de relacionamento, como o Orkut, ou em diários virtuais, os blogs. "Na internet, revelar traços da intimidade é quase uma obrigação para que a pessoa ganhe credibilidade e possa se relacionar com os outros", diz a especialista em linguagem na internet Fabiana Komesu, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São José do Rio Preto. Para os que tiverem acesso às cartas de Einstein, o Orkut realmente não tem a menor graça.
APÓS A MORTE, FIM DA PRIVACIDADE
Muitos artistas e escritores tiveram a vida íntima revelada com a publicação póstuma de suas cartas. Aqui, alguns deles.
SIMONE DE BEAUVOIR (1908-1986)
A escritora francesa contradizia seu feminismo quando escrevia a seu amante, o americano Nelson Algren. Em uma das cartas, conta ter comprado um robe de seda para usar enquanto ele a observava lavando pratos
WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791)
As cartas do compositor austríaco revelaram casos com uma cantora e com uma sobrinha. Sobre um baile em Praga, Mozart escreveu: "Não dancei e não apalpei as mulheres. Primeiro porque estava cansado e segundo porque sou um tonto de nascença"
JAMES JOYCE (1882-1941)
Em cartas só reveladas depois de sua morte,
o escritor irlandês contou que sentia prazer com o odor da flatulência da esposa, Nora Barnacle.
Ele pedia a ela para escrever obscenidades em suas cartas
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)
O caso extraconjugal com uma bibliotecária 25 anos mais jovem tornou-se público sete anos depois de sua morte, com a publicação de conversas gravadas pela amante