Ao se desculpar pela agressão ao
italiano e dizer ao mesmo tempo
"Eu não me arrependo de nada",
o craque Zidane criou uma questão
ética de solução complexa
André Fontenelle
Peter Schols/Reuters | A dez minutos do fim do jogo – e de sua carreira como jogador –, Zidane acerta o peito de Materazzi com uma cabeçada. Denunciado pelo juiz reserva, o francês foi expulso. Com um jogador a mais, a Itália segurou o empate e ganhou a Copa na decisão por pênaltis |
AFP |
Incidentes como o das fotos destas páginas acontecem com certa freqüência em campos de futebol. Mas nunca antes numa final de Copa do Mundo, diante de 2 bilhões de telespectadores, envolvendo o melhor jogador da competição, na partida anunciada como a última de sua carreira. Por isso a cabeçada do francês Zinedine Zidane no italiano Marco Materazzi provocou um frenesi mundial de explicações e condenações. A questão, em princípio, é simples. Dois erros não produzem um acerto. Duas brutalidades, uma verbal e a outra física, não resultam em empate ético, mas em desastre mútuo para o esporte, para a imagem dos grandes ídolos e para a mais perfeita de todas as organizações de Copa do Mundo.
Materazzi é um zagueiro com histórico de agressões. Seu apelido na Itália é "Matrix", pelo costume de aplicar nos adversários tesouras voadoras que lembram as lutas aéreas da trilogia no cinema. Zidane nunca foi santo. Em dezoito anos de carreira, recebeu catorze cartões vermelhos. O brasileiro Ronaldo, tão célebre quanto o francês, levou apenas dois em treze anos de bola. O encontro das duas locomotivas musculares de nervos irritáveis tinha enorme probabilidade de acabar mal. As pessoas que acompanham com assiduidade os campeonatos europeus sabiam disso. O grande público não. Materazzi era um ilustre desconhecido. Zidane, por seu lado, construíra uma imagem de atleta fora de série em campo e discreto na vida pessoal. Sua reação deixou perplexa a maioria dos telespectadores. Suas explicações, em entrevistas separadas a dois canais de televisão franceses, foram ambíguas. Depois de pedir desculpas "às crianças e aos educadores" pelo gesto "imperdoável", parafraseou Edith Piaf: "Je ne regrette rien" ("Eu não me arrependo de nada").
É possível escusar-se por um ato de violência e não se arrepender dele? Do ponto de vista filosófico, sim, diz Renato Janine Ribeiro, professor de ética na Universidade de São Paulo: "Ele pode perfeitamente se desculpar perante o público, por ter dado um mau exemplo como ídolo, e se recusar a fazê-lo perante o italiano. Às vezes, é necessário infringir regras para ser ético, desde que se arque com as conseqüências. E Zidane arcou". Do ponto de vista jurídico, a cabeçada do francês pode ser interpretada como resposta a uma ofensa à dignidade. "Ele estava no direito de reagir e não considero que houve excesso", diz o criminalista Luís Guilherme Vieira, um dos mais respeitados advogados do país. Em um tribunal, Zidane poderia processar Materazzi por crime contra a honra – e Materazzi ao francês, por lesões corporais.
Na ética particular dos campos de futebol, xingar um adversário, como fez o italiano, é uma provocação malvista, mas relevada. "Quem é menos talentoso sempre vai tentar desestabilizar o craque", diz o ex-jogador Zico – que no passado foi expulso, como Zidane, em situações semelhantes. Essa foi a base da defesa de Materazzi. "Eu disse coisas que se ouvem o tempo todo nos gramados e que às vezes nos escapam", afirmou. Não é bem assim. A regra 12 do futebol prevê cartão vermelho para o jogador que usar "linguagem insultuosa". Mas na prática isso só acontece quando o xingado é o juiz. O italiano ainda pode vir a ser suspenso com base nas imagens de TV.
Materazzi encontrou as palavras certas para tirar Zidane do sério. O francês diz que lhe deu as costas e tentou ignorá-las, mas o rival as repetiu "uma, duas, três vezes", referindo-se a sua mãe e sua irmã. "Preferiria levar um soco no meio da cara", afirmou Zidane. Em sua reação há um componente cultural. Muçulmano filho de berberes que emigraram do norte da Argélia, ele parece cultivar uma virtude apreciada na terra dos pais, a devoção à família. Durante a Copa, terminava suas entrevistas com a frase "Eu te amo, mamãe". Vizinho de Ronaldo em La Moraleja, um condomínio classe A de Madri, Zidane vive discretamente com a mulher, a ex-bailarina espanhola Verónica, e os quatro filhos. Esconde a família dos paparazzi e raramente sai à noite ou vai a festinhas. Em abril, no aniversário de Ronald, filho do jogador brasileiro, levou as crianças, refugiou-se em um canto da sala e não ficou mais que meia hora. Comentou-se que a mãe de Zidane estaria internada no dia da final, o que reforçaria a tese do filho ferido, mas a informação foi desmentida.
Cada um enxergou o que quis no gesto impensado de Zidane. Alguns atribuíram-no à violência reprimida desde a infância pobre em um subúrbio de Marselha. O filósofo francês Bernard-Henri Lévy interpretou-o como "a insurreição de um homem contra o santo em que estavam tentando transformá-lo". Um parlamentar iraniano aplaudiu "a defesa do orgulho islâmico contra o injusto insulto". Imaginava-se que Materazzi o tratara de "terrorista", hipótese negada pelos dois jogadores. O caso pode ter um desfecho legal na quinta-feira 20, na Suíça, em uma acareação entre os dois protagonistas marcada pela Federação Internacional de Futebol. É um caso raro de julgamento em que os réus e vítimas são os mesmos.
Com reportagem de Letícia Sorg