Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 15, 2006

A alma das coisas

VEJA

A obra singular – e pouco conhecida –
do escritor uruguaio Felisberto Hernández


Miguel Sanches Neto

Divulgação
Felisberto Hernández: criou-se uma seita literária em torno dele


O uruguaio Felisberto Hernández (1902-1964) foi um pianista errante, incomodado com a sina de ter de ganhar a vida em concertos pelo interior. Quando o elogiavam como músico, exclamava: "Quero ser é escritor!". Não parecia ter o currículo típico do ofício. Abandonou a escola cedo e jamais se tornou um estudioso ou mesmo leitor assíduo. No entanto, esse naïf conseguiu não apenas ser escritor, mas um clássico, admirado por autores como os argentinos Julio Cortázar e Juan José Saer, o uruguaio Juan Carlos Onetti e o italiano Italo Calvino. Preso a ocupações inseguras e mal remuneradas, Hernández deixou uma obra pequena, que não foi percebida pelo seu público contemporâneo. Hoje, porém, sua literatura tornou-se objeto de culto: não se lê Felisberto, entra-se para uma religião. Uma boa oportunidade de participar dessa seita literária é o lançamento da coletânea O Cavalo Perdido e Outras Histórias (tradução de Davi Arrigucci Jr.; Cosac Naify; 232 páginas; 45 reais).

Com seleção e posfácio do tradutor, o volume traz uma novela, sete contos e um depoimento do autor, além de um prefácio de Cortázar. A novela O Cavalo Perdido, de 1943, pertence ao momento intermediário de sua obra, quando ele estava conquistando a respeitabilidade de um pequeno e prestigioso grupo de leitores. Já os contos são do fim da vida, quando ele se tornou dono absoluto de uma voz narrativa. Entregue aos movimentos livres da imaginação, a prosa de Hernández traz uma forma poética altamente controlada, com uma linguagem de rara originalidade. Tímido incorrigível, o autor vivia ilhado em seu mundo psicológico, indiferente aos outros. Seus personagens também têm uma relação inusitada com a realidade: com dificuldades para estabelecer relações com as pessoas, eles criam laços afetivos com os seres inanimados.

Na novela que dá título à coletânea, o menino que estudava piano na casa de uma professora apaixona-se pelos móveis dela, revelando uma timidez transformada em "curiosidade indiscreta" pelos objetos – é com um sentido de transgressão que ele ergue a capa da cadeira para desvelar-lhe a intimidade. Um mesmo fascínio pelas coisas marca a narrativa do conto O Balcão: "Os objetos adquiriam alma à medida que entravam em relação com as pessoas". Para estes personagens que desistiram dos eventos banais para criar outra ordem existencial, as coisas inanimadas são os companheiros mais constantes – e mais humanos.

 

Uma servidão silenciosa

"Muitos anos antes, outras mãos haviam obrigado aqueles objetos da mesa a ter uma forma. Aqueles seres da baixela teriam de servir para toda espécie de mãos. Qualquer uma delas poria os alimentos nas caras lisas e brilhantes dos pratos; obrigaria as jarras a se encher; os talheres, a se afundar na carne. Por último, os seres da baixela eram lavados, enxugados e conduzidos a seus pequenos aposentos. Alguns desses seres poderiam sobreviver a muitos pares de mãos, mas teriam de continuar servindo em silêncio."

Trecho do conto O Balcão

Livros
19 de julho de 2006

 
 

Leia trecho de O Cavalo Perdido
e Outras Histórias
, de Felisberto Hernández

A CASA INUNDADA

Daqueles dias, sempre recordo primeiro umas voltas num barco ao redor de uma ilha de plantas. De tempos em tempos, trocavam-nas; as plantas não se davam bem ali. Eu remava, postado atrás do corpo imenso de dona Margarita. Se ela olhasse para a ilha um longo tempo, era possível que me dissesse alguma coisa; mas não o que havia me prometido; só falava das plantas e parecia querer esconder no meio delas outros pensamentos. Eu me cansava de ter esperanças e levantava os remos como se fossem mãos entediadas de contar sempre as mesmas gotas. Mas já sabia que, noutras voltas do barco, tornaria a descobrir, uma vez mais, que esse cansaço era uma pequena mentira misturada a um pouco de felicidade. Então me resignava a esperar as palavras que me viriam daquele mundo quase mudo, de costas para mim, deslizando com o esforço de minhas mãos doloridas.

Uma tarde, pouco antes do anoitecer, tive a suspeita de que o marido de dona Margarita poderia estar enterrado na ilha. Por isso ela me fazia dar voltas por ali e me chamava de noite – quando havia lua – para dar voltas de novo. Contudo, o marido não podia estar naquela ilha; Alcides − o namorado da sobrinha de dona Margarita − disse-me que ela perdera o marido num precipício da Suíça. E também me lembrei do que me disse o barqueiro na noite em que cheguei à casa

inundada. Ele remava devagar enquanto percorríamos "a avenida de água", da largura de uma rua e ladeada de plátanos com bolotas. Entre outras coisas, fiquei sabendo que ele e um criado haviam enchido de terra a bacia da fonte do pátio,

para que mais tarde fosse uma ilha. Além disso, eu pensava que os movimentos de cabeça de dona Margarita – nas tardes em que seu olhar ia do livro à ilha e da ilha ao livro – não tinham relação com um morto escondido debaixo das plantas.

Também é certo que uma vez em que a vi de frente tive a impressão de que suas lentes grossas ensinavam os olhos a dissimular, e que a grande vidraça terminada numa cúpula que cobria o pátio e a pequena ilha parecia que era para encerrar

o silêncio em que se conservam os mortos.

Depois lembrei que ela não havia mandado fazer a vidraça. E eu gostava de saber que aquela casa, como um ser humano, tivera diferentes finalidades: primeiro fora casa de campo; depois, instituto astronômico; mas, como o telescópio que haviam pedido à América do Norte foi atirado ao fundo do mar pelos alemães, decidiram fazer, naquele pátio, um jardim-de-inverno; e, por último, dona Margarita comprou-a para inundá-la.

Agora, enquanto fazíamos a volta da ilha, eu envolvia essa senhora com suspeitas que nunca se ajustavam bem a ela. Mas seu corpo imenso, envolto numa simplicidade despojada, me provocava a tentação de imaginar um passado tenebroso para ele. De noite parecia maior, o silêncio o recobria como a um elefante adormecido, e às vezes vinha-lhe um pigarro esquisito, feito um suspiro rouco.

Eu tinha começado a gostar dela porque, depois da mudança brusca que me fez passar da miséria a esta opulência, eu vivia numa tranqüilidade generosa, e ela se prestava – como uma elefanta branca que emprestasse o lombo a um viajante – a imaginar disparates divertidos. Além do mais, embora não me perguntasse nada sobre minha vida, ao nos encontrarmos ela levantava as sobrancelhas como se fossem voar, e seus olhos, atrás das lentes, pareciam dizer: "O que está acontecendo, meu filho?".

Por isso, fui sentindo por ela uma amizade equivocada; e se agora deixo minha memória livre, ela se vai com essa primeira dona Margarita; porque a segunda, a verdadeira, a que conheci quando ela me contou sua história, no final da temporada, teve um jeito estranho de se mostrar inacessível. Mas agora devo me esforçar para começar esta história por seu verdadeiro princípio, e não me deter demais nas preferências das lembranças.

Alcides encontrou-se comigo em Buenos Aires, num dia em que eu estava muito fraco, convidou-me para um casamento e me fez comer de tudo. Na hora da cerimônia, pensou em arrumar um emprego para mim e, morrendo de rir, me

falou de uma "desatinada generosa" que podia me ajudar. E por fim me disse que ela havia mandado inundar uma casa conforme o sistema de um arquiteto sevilhano que também inundara uma casa para um árabe que queria se livrar da secura do deserto. Depois Alcides foi com a namorada à casa de dona Margarita, lhe falou muito dos meus livros e, por último, disse que eu era um "sonâmbulo de confiança". Ela decidiu contribuir, em seguida, com dinheiro; e no verão seguinte, se eu soubesse remar, me convidaria para a casa inundada. Não sei por quê, Alcides não me levava nunca; e depois ela ficou doente. Naquele verão foram à casa inundada antes que dona Margarita se restabelecesse e passaram os primeiros dias em seco. Mas quando fizeram a água entrar, mandaram me chamar. Tomei um trem que me levou até uma pequena cidade do interior e fui de carro dali até a casa. Aquela região me pareceu árida, mas com a chegada da noite pensei que podia haver árvores escondidas na escuridão. O chofer me deixou com as malas num pequeno atracadouro onde começava o canal, a "avenida de água", e tocou o sino, dependurado num plátano; mas já se projetava da casa a luz pálida que conduzia o barco. Via-se uma cúpula iluminada e ao lado um monstro tão escuro quanto a cúpula. (Era o tanque da água.) Sob a luz vinha um barco esverdeado com um homem de branco que começou a falar comigo antes de chegar. Conversou comigo o trajeto todo (foi ele quem contou da fonte cheia de terra). De repente vi se apagar a luz da cúpula. Nesse momento o barqueiro me dizia: "Ela não quer que atirem papéis nem que sujem o piso d'água. Da sala de jantar ao quarto de dona Margarita não há porta, e numa manhã em que acordou cedo, ela viu um pão que minha mulher tinha deixado cair vir nadando da sala de jantar. A dona ficou com muita raiva e lhe disse que fosse embora imediatamente, e que não havia coisa mais feia na vida do que ver um pão nadar".

A frente da casa estava coberta de trepadeiras. Chegamos a um saguão amplo, de luz amarelada, de onde se via um pouco do enorme pátio de água e a ilha. A água entrava no quarto da esquerda por baixo de uma porta fechada. O barqueiro amarrou a corda do barco num grande sapo de bronze apoiado na calçada da direita e por ali fomos com a bagagem até uma escada de cimento armado. No primeiro andar havia um corredor com vidraças que se perdiam no meio da fumaça de uma ampla cozinha, de onde saiu uma mulher gorda com flores no

coque. Parecia espanhola. Disse-me que a senhora, sua patroa, me receberia no dia seguinte; mas que falaria comigo naquela noite, pelo telefone.

Os móveis do meu quarto, grandes e escuros, pareciam se sentir incômodos entre as paredes brancas atacadas pela luz de uma lâmpada elétrica tosca, dependurada nua, no centro do quarto. A espanhola levantou minha valise e ficou surpresa com o peso. Eu disse a ela que eram livros. Então começou a me contar o mal que "tanto livro" fizera à sua patroa; e "que a tinham deixado até surda, tanto que não gostava que gritassem com ela". Eu devo ter feito algum gesto pelo incômodo da luz.

− A luz também incomoda o senhor? Acontece a mesma coisa com ela.

Fui acender um abajur; tinha uma cúpula verde e daria uma sombra agradável. No momento em que o acendi, tocou o telefone que ficava atrás dele e a espanhola atendeu. Dizia muitos "sins" e as florzinhas brancas acompanhavam comovidas

os movimentos do coque. Depois, ela dominava as palavras que lhe assomavam à boca com uma sílaba ou um sussurro. E quando pôs o fone no gancho, suspirou e saiu do quarto em silêncio.

Jantei e bebi um bom vinho. A espanhola falava comigo, mas eu, preocupado com o que podia me acontecer naquela casa, mal lhe respondia, balançando a cabeça como um móvel num piso pouco firme. No instante em que retirei a xícara de café do meio da luz cheia de fumaça de meu cigarro, ela tornou a me dizer que a senhora me chamaria pelo telefone. Eu olhava o aparelho, esperando continuamente o toque, mas ele soou num momento que eu não esperava. Dona Margarita me perguntou pela minha viagem e meu cansaço com voz agradável

e tênue. Eu lhe respondi alto, separando as palavras.

− Fale naturalmente − me disse. – Já lhe explico por que disse a Maria (a espanhola) que estou surda. Gostaria que o senhor ficasse tranqüilo nesta casa; é meu convidado; só lhe peço que reme o barco para mim e que suporte algo que tenho para lhe dizer. De minha parte, farei uma contribuição mensal para suas economias e procurarei lhe ser útil. Li seus contos à medida que foram sendo publicados. Não quis falar sobre eles com o Alcides por receio de discordar; sou suscetível; mas logo falaremos...

Eu estava absolutamente conquistado. Até disse a ela que no dia seguinte me chamasse às seis. Naquela primeira noite na casa inundada, fiquei intrigado com o que dona Margarita teria para me dizer, veio-me uma tensão estranha, e eu não

conseguia pegar no sono. Não sei quando adormeci. Às seis da manhã, um pequeno toque da campainha, como a picada de um inseto, me fez saltar da cama. Esperei, imóvel, que aquilo se repetisse. Assim foi. Levantei o fone.

− Está acordado?

− Sim, estou.

Depois de combinarmos a hora de nos vermos, ela me disse que eu podia descer de pijama e que estaria me esperando ao pé da escada. Naquele instante me senti como o empregado que tivesse um momento de folga. Na noite anterior, a escuridão tinha me parecido quase toda feita de árvores; agora, ao abrir a janela, pensei que elas tinham partido ao amanhecer. Só havia uma planície imensa num ar claro; e as únicas árvores eram os plátanos do canal. Um pouco de vento fazia o brilho de suas folhas se mexer; ao mesmo tempo elas assomavam à "avenida de água", tocando-se com as copas dissimuladamente. Talvez ali eu pudesse começar a viver de novo com uma alegria preguiçosa. Fechei a janela com cuidado, como se guardasse a nova paisagem para olhá-la mais tarde.

Vi, no fundo do corredor, a porta da cozinha aberta, e fui pedir água quente para me barbear no momento em que Maria servia o café a um homem jovem que me deu bom-dia com humildade; era um homem da água e falava de motores. A espanhola, com um sorriso, me tomou de um braço e me disse que me levaria inteirinho a meu quarto. Ao voltar, pelo corredor, vi ao pé da escada – alta e empinada – dona Margarita. Era muito volumosa e seu corpo sobressaía no pequeno bote como um pé gordo num sapato aberto. Tinha a cabeça baixa porque lia uns papéis, e suas tranças, ao redor da cabeça, davam a idéia de uma coroa dourada. Isso eu ia lembrando depois de um rápido olhar, pois temi que me surpreendesse a observá-la. Fiquei nervoso desse instante até o momento de encontrá-la. Mal pus o pé na escada, começou a olhar sem dissimulação e eu descia com a dificuldade de um líquido espesso escorrendo por um funil estreito. Estendeu-me a mão muito antes que eu chegasse embaixo. E me disse:

− O senhor não é como eu o imaginava... sempre me acontece isso. Me custará combinar seus contos com a sua cara.

Eu, sem poder sorrir, fazia movimentos afirmativos como um cavalo incomodado com o freio. E lhe respondi:

− Tenho muita curiosidade de conhecê-la e de saber o que vai acontecer.

 


 

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