O novo incentivo à indústria
naval só dará certo se o setor
for capaz de competir lá fora
Ronaldo Soares
Oscar Cabral |
Navio em reparo no Rio de Janeiro: nova chance para os estaleiros |
O governo brasileiro acaba de embarcar, sem passagem de volta, em uma aventura de alto risco. A Transpetro, subsidiária da Petrobras encarregada do transporte marítimo, homologou, no mês passado, o resultado da licitação para a construção de dezesseis de um total de 42 navios petroleiros. O ponto nevrálgico da empreitada reside na decisão de construí-los todos no Brasil, com pelo menos 65% de nacionalização das peças e serviços utilizados. O primeiro lote de encomendas custará 1,27 bilhão de dólares, podendo chegar a 6 bilhões quando todo o negócio estiver concluído. O preço está acima do limite em que um negócio desse tipo é considerado competitivo internacionalmente. O objetivo declarado é a tentativa de ressuscitar a indústria naval brasileira, que teve seu auge nos anos 70, mas foi à bancarrota já na metade da década seguinte. É essa a questão central que se coloca. O Brasil pode estar partindo para a retomada de uma indústria capaz de gerar 15 000 empregos diretos e tornar-se novamente referência mundial ou enterrar 6 bilhões de dólares bem no fundo do bolso de estaleiros inviáveis e das mesmas empreiteiras (sim, elas estão no negócio) de sempre. A aposta pode até ser boa, mas a banca precisa estar muito atenta.
O exemplo mundial mais bem-sucedido desse tipo de investimento governamental é a Coréia do Sul. O país iniciou um programa de incentivo à indústria naval na década de 70, inspirado, por sua vez, no modelo japonês de então, de criar grandes conglomerados industriais. Valendo-se do menor custo de mão-de-obra e da situação cambial mais favorável, a Coréia levou a melhor e virou líder no setor (veja quadro na pág. 72). Tudo isso, no entanto, foi feito à custa de um investimento de 70 bilhões de dólares, continuamente despejados ao longo de sete anos para que o setor começasse a andar com as próprias pernas. Esse dinheiro foi colocado na infra-estrutura e em financiamentos. O país volta e meia é acusado na Organização Mundial do Comércio (OMC) de subsidiar ilegalmente o setor. De qualquer forma, já no início dos anos 80, a participação coreana no mercado mundial saltou de 5% para 28%.
Chung Sung-Jun/Getty Images |
Estaleiro da Coréia: 70 bilhões de dólares alavancaram a indústria naquele país |
Sim, o negócio pode ser bom, segundo o exemplo internacional. Mas para isso há duas condições cruciais. A primeira é que exista disponibilidade de recursos em quantidade competitiva, como tiveram os coreanos. O Brasil tem um fôlego financeiro bem mais modesto do que a Coréia – o Fundo de Marinha Mercante dispõe de 10 bilhões de reais até 2010. A outra condição é que o governo brasileiro exerça um acompanhamento contínuo sobre a indústria naval, garantindo que o esforço será levado a sério. É aí que mora o perigo. Para usar uma metáfora futebolística, tão ao gosto do presidente Lula, equivale a esperar do zagueiro Juan a mesma perícia no ataque de seu colega de seleção Ronaldo. É contra a sua natureza. O governo brasileiro tem uma longa história de projetos abandonados, por simples descaso, por incompetência ou pela daninha prática de esvaziamento desses projetos quando os opositores chegam ao poder. "O que o armador mais teme é que o estaleiro entre em crise financeira durante a construção do navio. É preciso uma metodologia de acompanhamento da fabricação para resguardar o cliente. Não tem mágica, alguém vai ter de assumir o risco: o armador, o BNDES ou os dois", afirma o professor Segen Estefen, da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O próprio histórico da indústria naval brasileira é que a coloca sob suspeita. Alguns costumam atribuir seu fracasso à inflação galopante dos anos 80. Essa é uma explicação mais do que incompleta. Naquela época, o Brasil chegou a ocupar uma posição de liderança, mas baseada apenas nas encomendas do governo, que colocava o dinheiro a fundo perdido. A estrutura cartorial na qual o setor se fechou serviu para protegê-lo, mas minou sua competitividade internacional. Houve também má gestão dos estaleiros. Os navios eram fabricados aqui por preços três ou quatro vezes acima dos cobrados por outros países. As encomendas invariavelmente atrasavam em relação aos prazos de entrega estabelecidos. O Brasil tinha uma carteira de 1,5 bilhão de dólares anuais e chegou a ser o segundo do setor no mundo. Mas cerca de 90% dos pedidos eram fruto de demanda interna de estatais – um desempenho artificial, portanto. Quando a mão generosa do governo saiu de cena, no início dos anos 80, as dívidas se multiplicaram e os postos de trabalho sumiram – dos 40.000 empregos existentes em 1979, restavam apenas 550 duas décadas depois.
É esse o tamanho do fracasso e, portanto, do risco que se corre agora. Precisa estar claro nesta retomada da indústria naval que o governo pode até dar o primeiro impulso, mas em cinco ou dez anos os estaleiros terão de passar a navegar com suas próprias forças. Ou seja, trabalhando tanto para o mercado interno (se houver) quanto para o externo – que existe e é gigantesco, embora ultracompetitivo. Caso contrário, uma iniciativa que se pretende uma aposta no futuro pode virar um mergulho tenebroso no passado. Uma notícia alvissareira são novos grupos que estão entrando no setor – que primou décadas atrás por ter empresários especializados mais na construção de cartórios sólidos que na de navios. "O teste do pudim é competir lá fora", resume o economista Armando Castelar. Somente assim essa indústria se dará a importância que merece. Estima-se que, para cada emprego direto, sejam gerados quatro indiretos. O desafio é acertar na dose e não deixar que as empresas se tornem dependentes do que o economista americano Michael Porter, o guru da competitividade, chama de "efeito narcotizante dos contratos governamentais e das políticas protecionistas para os setores claudicantes".
Infelizmente, os primeiros sinais emitidos pelo empresariado indicam que esse efeito narcotizante ainda está impregnado no ar. Um executivo de uma multinacional de transportes marítimos que atua no Brasil relatou a VEJA um episódio preocupante. No ano passado, sua empresa sondou o mercado local sobre a possibilidade de fabricar nos estaleiros daqui parte dos 78 navios que precisava encomendar. As empresas que procurou alegaram, sabe-se lá o porquê, mas pode-se imaginar, que preferiam esperar os contratos com a Petrobras. A multinacional colocou então toda a encomenda, um negócio de 1,5 bilhão de dólares, em estaleiros da Coréia do Sul.
Há ainda outro sinal preocupante. Quem chamou atenção para ele foi o Sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima. Ou seja, os compradores de navios. Segundo o sindicato, a expectativa gerada pela encomenda estatal dificultou as cotações nos estaleiros nos últimos meses. Quando dão resposta a alguma consulta, os estaleiros têm apresentado preços estratosféricos. Após negociar com os consórcios selecionados para construir os primeiros dezesseis petroleiros, a subsidiária da Petrobras obteve redução de quase 250 milhões de dólares em relação à oferta inicial dos grupos. Com isso, a encomenda vai sair por 1,27 bilhão de dólares, evidentemente acima da média internacional.
Ainda assim é possível apostar na empreitada. O Brasil gastou, no ano passado, 10 bilhões de dólares com transporte marítimo. Apenas 4% desse total foi contratado com empresas nacionais. Hoje, 95% do comércio internacional brasileiro é feito por navios. Eles têm importância fundamental no comércio entre as nações. O transporte marítimo internacional é imbatível em custos e já detém tecnologia de ponta, capaz de armazenar os mais diferentes produtos. Há alguns anos, a indústria nacional de suco de laranja vinha perdendo espaço porque, no trajeto entre o Brasil e os Estados Unidos, o suco oxidava e ganhava um sabor mais amargo, dando a impressão de ser uma bebida artificial. Inventaram-se, então, navios dotados de máquinas que revolvem o suco no trajeto, mantendo-o com as propriedades originais. É um exemplo simples mas didático para a atual empreitada governamental. Criatividade para resolver os problemas que virão, foco no mercado internacional e o compromisso com o êxito podem evitar o gosto amargo de mais um fracasso.
LÁ DEU CERTO – O EXEMPLO COREANO
Em 2003, os estaleiros da Coréia do Sul assumiram a liderança mundial em produção de navios, desbancando os japoneses, que praticamente dominaram o setor durante a segunda metade do século XX. A Coréia do Sul detém hoje 38% do mercado em encomendas, mais do que o dobro de toda a Europa (17%) e bem à frente dos concorrentes mais próximos, Japão (23%) e China (16%). Eis alguns ingredientes da receita do sucesso coreano:
• O país estimulou a criação de grandes conglomerados industriais, tendo a construção naval como carro-chefe
• Investiu em alta tecnologia nos estaleiros, estimulou pesquisas no setor naval como forma de ganhar produtividade, competitividade e passar a atuar no mercado internacional
• Adotou políticas de liberalização e desregulamentação do setor, abrindo o mercado interno ao capital estrangeiro, para evitar cartórios locais. Hoje, todas as grandes empresas de navegação do mundo têm encomendas no país, e cerca de 80% da produção local é para atender ao mercado externo