Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 15, 2006

A Loucura de Churchill, de Christopher Catherwood-VEJA

Desvario colonial

Antes do desempenho heróico na II Guerra,
Churchill criou um desastre chamado Iraque


Jerônimo Teixeira

The image Winston Churchill: sua maior preocupação era cortar os gastos militares da coroa em uma colônia rica em petróleo
O Iraque que hoje se converteu no pesadelo da política externa americana foi desde sempre uma nação fadada ao desastre. Desenhadas nos anos 1920, suas fronteiras confinam árabes sunitas e xiitas e curdos. Essa reunião mal-ajambrada de grupos religiosos e étnicos tão distintos – e tantas vezes conflitantes – é um legado do império britânico. E a responsabilidade cabe em particular ao político inglês que, naquela época, exercia o cargo de ministro das Colônias: Winston Churchill. Foi Churchill que reuniu, em 1921, um grupo de especialistas – que ele chamava jocosamente de "40 ladrões", em referência às Mil e Uma Noites – em um hotel do Cairo para discutir a criação de um único país na Mesopotâmia. Esse episódio infeliz na carreira de um dos maiores estadistas do século XX é dissecado com brilho no livro A Loucura de Churchill (tradução de Clóvis Marques; Record; 308 páginas; 46,90 reais), do historiador e professor da Universidade de Cambridge Christopher Catherwood. "O Oriente Médio seria hoje bem mais pacífico se Churchill houvesse concedido um país a cada grupo, e especialmente se os curdos ganhassem um Estado próprio, que até hoje eles não têm", disse o autor a VEJA.

A reputação (merecida) de Churchill deve-se a sua liderança brilhante e inspiradora na guerra dos aliados contra o nazismo, durante os anos 40. A obra de Catherwood não obscurece esse desempenho heróico. Ao mergulhar na correspondência de Churchill no início da década de 20, contudo, Catherwood traz à luz um Churchill ainda muito distante do líder que perceberia, com presciência, o perigo representado por Hitler. As cartas sobre o Oriente Médio remetidas a figuras como Percy Cox, alto comissário britânico em Bagdá, ou David Lloyd George, o primeiro-ministro, revelam uma única preocupação: poupar uns trocos para a coroa britânica. Em 1922, alguns dias antes de perder o Ministério das Colônias, Churchill ainda se vangloriava de ter reduzido os gastos militares no Iraque de 32 milhões para 8 milhões de libras esterlinas por ano.

Os britânicos assumiram a Mesopotâmia – como era mais conhecida na época a região rica em história e petróleo onde foi inventado o Iraque – como uma posse colonial na divisão do espólio da I Guerra Mundial. A região pertencera ao Império Otomano, que se desmantelou depois de derrotado em 1918. Os britânicos enfrentaram duras revoltas nacionalistas em 1920. Foi para discutir uma saída honrosa (e barata) que Churchill convocou a Conferência do Cairo, no ano seguinte. Entre os notáveis lá reunidos estavam T.E. Lawrence, o aventureiro mais conhecido como Lawrence da Arábia, e a viajante Gertrude Bell, que mais tarde fundaria o Museu Arqueológico de Bagdá. Foi essa dupla, e em especial Lawrence, que convenceu Churchill a criar um Estado único na Mesopotâmia. A conferência até indicou o primeiro soberano da nova nação: Faisal I, companheiro de Lawrence nas revoltas contra os otomanos. O futuro rei já havia tentado sua sorte na Síria, de onde foi corrido pelos franceses. Churchill confiava na paixão nacionalista árabe que Faisal poderia mobilizar – mas ignorou totalmente as divisões religiosas do Islã: Faisal deu início a uma longa e opressiva tradição de governantes sunitas em um país de maioria xiita. Seus descendentes seriam derrubados em um golpe sangrento em 1958, mas o Partido Baath (o mesmo de Saddam Hussein) manteria o comando em mãos sunitas.

Churchill também demonstrou alguma preocupação com os curdos. Cogitou da criação de um Estado independente para eles, mas abandonou a idéia – achava que um país unificado teria mais chances contra uma provável invasão turca (que nunca aconteceu). O dado mais curioso de A Loucura de Churchill, porém, é o desinteresse com que os britânicos trataram o potencial petrolífero da região. Churchill chegou a dizer que a coroa britânica teria mais possibilidade de conseguir um bom retorno econômico investindo nas colônias africanas. A importância econômica e política dos lençóis iraquianos não pode ser subestimada, mas, na avaliação polêmica de Catherwood, ainda hoje esse não é o único motor dos conflitos da região. "Para os conservadores americanos, a construção de um governo pró-ocidental no Oriente Médio é tão importante quanto o petróleo. Trata-se de uma fantasia, e é por isso que a política americana no Iraque é esse desastre: eles colocaram a ideologia à frente da realidade", acusa o historiador.

Livros
19 de julho de 2006



Leia trecho de A Loucura de Churchill, de Christopher Catherwood

Capítulo Um
De Abraão a Allenby

Em março de 1921, Winston Churchill, recém-nomeado secretário
de Estado para as Colônias, convocou uma grande equipe de assessores para um encontro num hotel de luxo no Cairo. Durante alguns dias, os especialistas ali reunidos, entre eles luminares como T. E. Lawrence (Lawrence da Arábia) e a eminente arqueóloga Gertrude Bell, criaram um país completamente novo, o Iraque. Desde sua criação em 1922, seu nome tem estado ligado a guerras, intrigas, opressão e violências de toda sorte. Mas a terra ocupada pelo Iraque tem uma história que nos é muito familiar, especialmente se algum dia estudamos a história antiga ou ouvimos na escola relatos de histórias da Bíblia.

A herança comum da história bíblica explica a indignação internacional com o saque dos museus de Bagdá em 2003. São poucos os museus importantes do Ocidente que hoje não abrigam em seu acervo objetos encontrados nas grandes expedições arqueológicas feitas à região no início do século XX (entre elas as que foram dirigidas por dois dos principais assessores de Churchill, Gertrude Bell e T. E. Lawrence). O número de leitores da Bíblia, sobretudo na Europa ocidental, é muito menor hoje do que entre os contemporâneos de Churchill na década de 1920, que mesmo não freqüentando a igreja regularmente na vida adulta muito provavelmente haviam aprendido as histórias bíblicas ainda na infância.

Por causa de nossas memórias da infância, muitos de nós achamos que conhecemos a história da região, mas aquilo de que nos lembramos muitas vezes é enganoso.

Veja-se por exemplo o seguinte:

Abraão era um exilado iraquiano que se transferiu para Israel...

Trata-se, logo percebemos, de um anacronismo, tal como nos famosos versos do Júlio César de Shakespeare em que um dos conspiradores ouve as badaladas de um relógio, mecanismo que só seria inventado mais de um milênio depois da morte de César.

Infelizmente, a história está cheia desses anacronismos, não faltando quem projete realidades e disputas atuais na tela do passado. Tragicamente, no século XX, milhões de pessoas foram massacradas com base simplesmente em tais leituras da história — tema de muitos livros recentes e um dos principais temas deste livro: Churchill inventou o Iraque, e o país que hoje leva este nome não existia antes de sua iniciativa. Para avaliar quão anacrônica é esta afirmação, precisamos apenas nos transportar para os tempos pré-históricos da região geográfica que hoje comporta as fronteiras do Iraque. Para enxergar os perigos dessa visão da história, precisamos apenas considerar um dos seus principais praticantes — ninguém menos que Saddam Hussein, que abusou do passado para se aferrar ao poder.

Abraão, o pai da nação judaica, indiscutivelmente era originário de Ur, cidade que hoje fica no Iraque; mas considerá-lo iraquiano seria naturalmente ridículo. Saddam Hussein, contudo, não hesitou em se comparar ao grande governante assírio Nabucodonosor. Saddam chegou a gastar uma enorme fortuna para reconstruir a antiga cidade de Babilônia, mandando inscrever seu próprio nome nas fachadas dos prédios reconstruídos, exatamente como os antigos governantes da cidade haviam deixado os seus nas construções originais. As pretensões de Saddam eram tão absurdas quanto considerar Abraão um iraquiano, mas ele não hesitou em se apropriar da poderosa imagística de grandes regimes do passado para manter seu controle repressivo sobre a população, até ser deposto em 2003.

É vital ter sempre em mente essa perspectiva histórica enquanto sobrevoamos a história das terras entre os dois rios — o Tigre e o Eufrates, berço de boa parte da civilização mundial.

Nenhuma história do Iraque foi escrita antes de sua criação por Churchill, e nos memorandos que enviou a funcionários do Ministério das Colônias ele precisava lembrar-lhes que usassem o nome do novo Estado, e não o antigo nome de origem grega da região, Mesopotâmia, que significa terra entre os rios. Ele também é chamado de Crescente Fértil, pois as terras que cercam o vale do Tigre e do Eufrates propriamente dito formam essencialmente um deserto inabitável.

Unificar a história dessa região geográfica também poderia ser considerado um anacronismo, pois não é algo que teriam feito povos de tempos anteriores. Por exemplo, embora boa parte do Iraque de hoje estivesse a certa altura entre as terras do grande califado Abássida ou, posteriormente, do não menos poderoso Império Otomano, outras áreas do atual país passaram séculos sob o domínio de diferentes governantes da Pérsia, hoje sucedida como Estado pelo Irã.

Com isto em mente, damos uma rápida olhada no passado incrivelmente rico e complexo da terra entre os rios, a região em que foram descobertos alguns dos mais primitivos indícios da civilização. Embora hoje tenhamos conhecimento de outros lugares não menos antigos, como Mohenjo Daro, no vale do Industão, podemos continuar nos referindo à cultura mesopotâmica como um "berço da civilização", embora já não possamos falar de "o berço".

Algumas das mais antigas formas de escrita (conhecidas como cuneiformes) foram descobertas em tabuletas de argila em algumas das mais antigas cidades do mundo, na Mesopotâmia. Muitos de nossos mais venerados mitos, como a história da inundação, o Épico de Gilgamesh, também procedem de histórias narradas milhares de anos atrás em cidades como Ur. Podemos ter como certo que aquilo que no Ocidente chamamos de civilização judaico-cristã originou-se há vários milênios nas planícies inundadas dos rios Tigre e Eufrates.

Também foi lá que surgiram alguns dos maiores promulgadores de leis da humanidade: o código de Hamurabi pode ter já milhares de anos de idade, mas nele reconhecemos uma antiga tentativa de criar um sistema de justiça que, preocupando-se tanto com os ricos e privilegiados quanto com os pobres e renegados, revelava-se extraordinariamente progressista. Hamurabi, o soberano legislador, infelizmente foi outra das antigas personalidades históricas que teve o nome usurpado por Saddam Hussein, que batizou uma de suas divisões militares com seu nome.

As ruínas de Ur, a cidade caldéia de Abraão, podem ser visitadas atualmente no Iraque, e embora não seja correto referir-se aos judeus como exilados iraquianos, eles inquestionavelmente pertencem aos maiores grupos semíticos dos povos da região.

Os signos do zodíaco provavelmente eram conhecidos de Abraão, assim como a semana de sete dias. Tudo isto, mais uma vez, devemos aos primeiros mesopotâmios.

Sabemos pela Bíblia que Saddam não foi o primeiro agressor a surgir na região. Um dos primeiros exemplos de conquista estrangeira no Velho Testamento é a submissão da Mesopotâmia no século VIII a.C. pelo monarca assírio Tiglath-Pileser III, cujos métodos sanguinários de captura de cidades parecem ter uma conotação terrivelmente contemporânea.

O povo hoje conhecido como assírio converteu-se ao cristianismo, e, ao contrário da maioria dos povos vizinhos, manteve-se fiel a esta fé ao longo da era islâmica. (Os aterrorizados refugiados assírios cristãos tornaram-se uma das maiores preocupações de Churchill na Conferência do Cairo em 1921.) Sendo cristãos, muitos assírios mostravam-se menos antagônicos à interferência ocidental cristã, e hoje, no século XXI, a nada desprezível minoria cristã do Iraque naturalmente encara com receio o possível advento de um Estado declaradamente islâmico.

O famoso quadro Festim de Baltazar, de Rembrandt, retratando o monarca em ansiosa leitura da advertência de Deus inscrita na parede, lembra-nos que até mesmo o agressivo e belicoso império assírio não podia durar para sempre. Todavia, como o passado da Mesopotâmia faz parte de nossa herança cultural, a história da Assíria também é nossa.

Ao longo de toda a história registrada pelo homem, as terras entre os rios constituíram campo de batalha entre impérios. Nos séculos anteriores a Cristo, as batalhas freqüentemente opunham o grande Império Romano e o amplo Império Sassânida a leste, por muito tempo sediado em Ctesifonte, hoje uma cidade arruinada, não muito distante da atual Bagdá. A Mesopotâmia era um disputado território de fronteira, às vezes dividida entre os dois impérios em guerra e outras submetida essencialmente ao controle de um deles. Por milhares de anos, nem uma única vez o território do atual Iraque chegou a pertencer inteiramente a um dos impérios rivais.

No Ocidente, esquecemos que embora o Império Romano do Ocidente tenha sido conquistado no século V por invasores bárbaros, o Império Romano do Oriente, mais conhecido como Império Bizantino, de uma forma ou de outra perdurou de maneira quase contínua até ser derrotado em 1453. E não apenas isto: os bizantinos, apesar de falarem grego, consideravam-se romanos, embora sua ligação com o Império Romano original de fala latina viesse a tornar-se tênue e distante.

Governantes e possíveis conquistadores entraram e saíram da região mesopotâmica durante milênios, mas em uma coisa havia continuidade: o permanente estado de guerra na fronteira com povos que controlavam o território que hoje constitui o Irã, país cuja história política é uma das poucas (juntamente com a da China) que podem ser consideradas contínuas ao longo de milhares de anos. Isto não quer dizer que as dinastias que governavam o Irã não mudaram ou que os governantes fossem compatriotas dos povos que governavam. Mas o Irã efetivamente tem uma história cultural ininterrupta, o que não é tão verdadeiro em relação aos árabes das terras entre o Tigre e o Eufrates.

Por volta do século VII d.C., não surpreende que a guerra milenar entre o principal império no controle da região hoje conhecida como Oriente Médio — o bizantino — e aquele que acaso estivesse no controle do Irã estivesse já deixando esgotados ambos os lados. Significava isto que, apesar de sua antigüidade, os dois adversários eram altamente vulneráveis a qualquer novo poder que surgisse na região.

Em 622 d.C., veio a surgir esse poder: o Islã.

O próprio Maomé chegou da região hoje conhecida como Arábia Saudita. Não é objetivo deste livro detalhar minuciosamente as espetaculares conquistas árabes de conversão que se seguiram. Basta dizer que em questão de poucos anos os árabes criaram um império que se estendia do Hindu Kush, a leste, ao litoral atlântico da Espanha, a oeste. (Por sinal, eles também proporcionaram ao Irã a rara experiência de ser apenas parte de um império maior, pela primeira vez desde as conquistas de Alexandre, o Grande, novecentos anos antes.)

Como hoje em dia a esmagadora maioria dos iraquianos é de muçulmanos, devemos deter-nos no exame de certos acontecimentos de especial significado nos primórdios da história do Islã, aqueles mesmos que geraram grandes divisões na sociedade e na cultura iraquianas.

Maomé, o fundador do Islã, morreu em 632, depois de conquistar a maior parte da península arábica. Foi sob o comando dos seus quatro principais sucessores, os Quatro Califas*, que teve início efetivamente uma expansão exponencial — da nova fé em si mesma e das terras sobre as quais reinavam seus seguidores.

Infelizmente, Maomé não legou uma clara linha sucessória, e alguns devotados muçulmanos acreditavam, como acreditam ainda hoje, que o cargo de califa (sucessor militar/político/teológico) deveria ser eletivo, sendo o califa escolhido pela uma (a comunidade dos fiéis). Outros consideram que a linha sucessória natural a partir de Maomé deve passar pela família do próprio profeta. Mas também aqui encontramos dificuldades, pois ainda em vida de Maomé alguns de seus primeiros opositores se encontravam em sua própria família — o ramo ou clã dos coraixitas. Como Maomé não teve filhos, tratava-se de saber que ramo masculino da família dos Quraish deveria ser escolhido como sucessor (a descendência feminina não era levada em consideração, a menos que também estivesse ligada a um parentesco de linhagem masculina).

Tudo isto pode parecer remoto para nós no século XXI, mas vem a ser a causa da primeira grande divisão no interior do Islã, uma divisão ainda hoje substantiva: a que aconteceu entre os sunitas e os xiitas. Como essa divisão teve um forte impacto nas decisões tomadas pelos britânicos no Cairo em 1921, constituindo ainda hoje uma questão da maior relevância na política iraquiana, não podemos ignorá-la.

Não demorou para que os exércitos árabes conquistassem a maior parte dos territórios que hoje constituem a Síria, o Iraque, o Egito e a Pérsia, vindo a maior parte dos atuais territórios da Espanha e de Portugal a cair igualmente em poder dos exércitos islâmicos pouco depois, no início do século VIII. Em certo sentido, portanto, pode-se dizer que desde então o Iraque tem feito parte do mundo islâmico. Entretanto, para simplificar uma história das mais complexas, basta dizer que se manifestaram divergências entre os diferentes clãs árabes, e a época privilegiada das primeiras conquistas teve um forte elemento negativo.

Embora os exércitos islâmicos obtivessem grandes êxitos nos campos de batalha, dois dos três primeiros califas tiveram morte violenta nos quatorze anos subseqüentes à morte do profeta, sendo um deles assassinado pelo filho do primeiro califa, Abu Bakr. Ali, parente sangüíneo próximo do profeta (primo de linhagem masculina, além de marido de Fátima, filha de Maomé), tornou-se o quarto califa, mas sua autoridade veio a ser desafiada em suas próprias fileiras, recusando-se o poderoso clã dos omíadas a reconhecê-lo como califa. Com seu assassinato por membros de um outro clã, seu filho primogênito Hassan veio a sucedê-lo, mas, corrompido pelos omíadas, entregou o cargo. Mu'awiia, do clã dos omíadas, foi feito califa, e o califado foi transferido para Damasco, a velha cidade do território que hoje conhecemos como Síria, batizada com o nome da província romana homônima.

O segundo filho de Ali, Hussein, revelou-se mais valente, entrando em guerra com os omíadas. Seus seguidores eram chamados de Shia't Ali, o partido de Ali, e é desse nome que deriva a designação de muçulmanos xiitas conferida a todos os subseqüentes seguidores.

Hoje em dia, associamos o Islã xiita ao Irã, mas se trata de um anacronismo, pois a vasta maioria dos primeiros xiitas eram, como o próprio Hussein, árabes, ao contrário dos persas (mais tarde, iranianos). O coração do Islã xiita ainda hoje se encontra no território que hoje identificamos como o Iraque, e é nessa parte do mundo muçulmano que se encontram os mais sagrados locais do xiismo. Somente séculos depois é que o islamismo xiita seria feito religião oficial do Irã por um xá.

Não obstante a impecável linhagem de Hussein, a maioria dos uma muçulmanos seguiram os omíadas. Em 680, Hussein e suas forças foram derrotados na batalha de Karbala, na qual ele perdeu a vida. É a sua morte — ou seu martírio, segundo os xiitas — que ainda hoje é comemorada pelos xiitas do Iraque e do Irã (nas comemorações de fevereiro de 2004 no Iraque, eles foram atingidos por explosões que ceifaram muitas vidas). Se no momento em que este livro estiver sendo lido eleições tiverem sido realizadas no Iraque, com a implantação de um regime de maioria xiita, será uma das raras vezes em que os xiitas jamais terão controlado o núcleo do território sagrado do Islã xiita.

Tendo o Partido de Ali firmado sua posição, a maioria dos muçulmanos seguiu os omíadas, e hoje essa maioria é conhecida como a dos muçulmanos sunitas, nome derivado de suna, os principais ensinamentos e o exemplo de Maomé. Hoje, 80 a 85% dos muçulmanos de todo o mundo são sunitas, entre eles os árabes da região central do moderno Iraque (o "triângulo sunita") e a minoria curda, etnicamente diferenciada, do norte do país. Os xiitas constituem a vasta maioria dos iranianos, dos azerbaijanos e 60% a 65% dos iraquianos de etnia árabe que vivem predominantemente no sul do país.

A maioria dos xiitas são os chamados "dos Doze", o que significa que reconhecem que Maomé teve doze sucessores ungidos ( imãs), a começar por Ali. Uma minoria entre os xiitas reconhece um número menor de imãs, sendo o mais conhecido dentre esses grupos o dos ismaelitas, que hoje têm como líder espiritual o Aga Khan, descendente de Maomé. A maioria dos xiitas iraquianos é "dos Doze". É importante ter em mente que durante muitos anos ao longo da Idade Média o Egito também foi controlado por uma dinastia xiita, a dos fatímidas; é este outro motivo pelo qual seria incorreto associar o Islã xiita exclusivamente ao Irã, pois longe está de ser esta a verdade histórica.

Os curdos, um povo antigo ao qual é atribuída ascendência indo-européia, são etnicamente próximos dos atuais iranianos; não são, portanto, árabes. Há quem os associe aos hititas dos tempos bíblicos, mas não seria possível esperar precisão tanto tempo depois. Têm levado uma vida de nômades na maior parte de sua história, e nunca tiveram um Estado forte próprio. As regiões por eles habitadas são fronteiriças entre os grandes impérios romano e bizantino, a oeste, e os territórios iranianos a leste, abrangendo hoje as regiões fronteiriças do Irã, do Iraque e da Turquia (cujos governos, suspeitamos fortemente, gostariam que desaparecessem).

O curdo mais famoso da história é provavelmente Saladino, o general e governante muçulmano que derrotou os exércitos de cruzados europeus no século XII. Saddam Hussein costumava comparar-se aos heróis do passado, e entre eles estava Saladino — o que parecia particularmente apropriado, na medida em que Saladino derrotou as forças do Ocidente. Entretanto, Saddam reprimiu brutalmente os curdos, e em 1987 e 1988 usou gás venenoso para matar milhares de aldeãos curdos — especialmente na aldeia de Halabja, em março de 1988 —, e portanto não deixa de ser irônico que usasse o mais famoso curdo da história para tentar fortalecer a imagem de seu poder.

Em termos teológicos, os curdos optaram antes pelo Islã sunita do que pelo xiita, e Faiçal, o primeiro rei do Iraque, pretendia contrabalançar a maioria muçulmana xiita do sul do Iraque com árabes sunitas no centro e curdos sunitas no norte. Os planos de Faiçal constituíram um dos principais fatores da infeliz decisão britânica de integrar territórios curdos ao Iraque na década de 1920, em vez de conceder independência aos curdos; ao longo do século XX, a decisão haveria de custar muito aos britânicos. Seja como for, um Estado curdo independente — mesmo que viesse a incluir os territórios curdos da Turquia e do Irã — seria praticamente inviável em termos econômicos sem o petróleo de Mosul.

Para voltar ao nosso tema central, a história dos califados é longa e complicada; resumindo, contudo, os primeiros sucessores de Maomé, os califas omíadas, logo criaram um império que se estendia do atual território do Irã ao da Espanha. Não fosse pela batalha ocorrida em 732 perto das cidades francesas de Tours e Poitiers, poderiam ter conquistado igualmente toda a Europa. Em 749, contudo, os omíadas foram derrubados e substituídos por califas de outro ramo da família do profeta, os descendentes de seu tio, Abas. A dinastia abássida sucedeu aos omíadas, que fugiram para a Espanha, na época sob controle muçulmano, ali criando uma das culturas mais esplêndidas e sofisticadas dentre todas as dinastias islâmicas.

Os novos califas abássidas são importantes por terem transferido a capital (o califado) de Damasco para uma cidade nova e até então quase desconhecida: Bagdá. Aprendemos com a história, a arqueologia e contos de fadas como As mil e uma noites que o período abássida em Bagdá representou a época de ouro do Islã. Em certo sentido, podemos dizer que desde esse período o Islã nunca mais voltou a ter a mesma grandeza, o mesmo grau de esplendor e civilização. Nós, ocidentais, não devemos jamais esquecer que durante essa era o mundo islâmico estava muito à frente da civilização ocidental em praticamente todos os terrenos: educação, medicina, tecnologia, artes e ciências. O califado com sede em Bagdá era um dos grandes centros da civilização mundial, numa época em que o Ocidente parecia comparativamente atrasado. Sem chegarmos no entanto a considerar a questão em detalhes, o fato é que o poder dos abássidas logo também viria a declinar.

A civilização abássida era árabe, com forte mistura de influências persas/iranianas, mas logo um povo turaniano da Ásia central, o dos turcos, tendo-se convertido ao Islã, começaria a exercer impacto sobre a dinastia abássida. Muitos turcos eram usados pelos califas como guarda-costas de elite, exatamente como os imperadores romanos, tanto do Ocidente quanto bizantinos, empregavam mercenários germânicos ou nórdicos, como a guarda varangiana. Os que faziam a guarda dos califas eram chamados de mamelucos, e com o tempo sua influência aumentaria lenta e imperceptivelmente, mas com constância. Viriam a tornar-se tão influentes que se apoderaram das rédeas do verdadeiro poder, confinando seus impotentes senhores abássidas em funções basicamente decorativas. Em certos períodos, as dinastias de origem persa (do atual Irã) também vieram a exercer poder sobre o califado.

Os califas eram tanto árabes quanto muçulmanos. Depois da selvagem conquista mongol de Bagdá em 1258, no entanto, nunca mais a civilização árabe voltaria a ser a mesma. Com o tempo, os mongóis se converteram ao Islã, e pela altura do século XV surgira um poderoso império islâmico: o dos turcos otomanos. Seus sultãos, estabelecidos simbolicamente naquela que fora até então a capital cristã de Constantinopla (hoje Istambul), adotaram o velho título de califa, embora, ao contrário de seus antecessores, não fossem árabes nem descendessem de Maomé.

Os otomanos seriam a mais duradoura e de longe a mais poderosa de todas as grandes dinastias turcas. Eles próprios recém-convertidos, não só conquistaram o centro do Islã como se livraram do grande império bizantino cristão que por bem mais de sete séculos constituíra a principal defesa do Ocidente cristão contra uma invasão islâmica vinda de sudeste. Constantinopla, uma poderosa cidade refundada pelo próprio Constantino, o Grande no século IV, foi tomada pelos otomanos em 1453. Por essa época, boa parte do território balcânico também fora tomada, e em 1526 até mesmo a maior parte do território da Hungria veio a tornar-se, por mais de um século, parte do Império Otomano. Em 1529, a tentativa dos otomanos de tomar a própria Viena, a capital dos sacros imperadores romanos, só fracassou por muito pouco, e caberia perfeitamente sustentar que ao longo dos 160 anos subseqüentes os otomanos mantiveram sua vantagem sobre os exércitos da Europa cristã. Mostraram-se igualmente bem-sucedidos a leste, recuperando aos iranianos boa parte dos territórios perdidos para eles pelas dinastias turcas ao longo dos séculos anteriores.

Os otomanos também se proclamaram califas dos fiéis, embora fossem turcos — e não árabes — e ainda houvesse legítimos descendentes árabes do profeta, particularmente o ramo hachemita do próprio clã coraixita de Maomé, que vivia na Arábia. Logo, no entanto, com a ascensão do poder otomano e o evidente sucesso do novo super-Estado muçulmano, poucos seriam os muçulmanos inclinados a contestar a autoridade islâmica da nova dinastia de califas. Tratava-se de um império turco, e não árabe, mas o orgulho muçulmano fora perfeitamente revigorado com sua supremacia.

A força do Império Otomano em seus primeiros anos pode ser vista claramente em sua capacidade de conduzir uma guerra em duas frentes — contra os europeus a oeste e os iranianos a leste —, não raro ao mesmo tempo. Mais uma vez deixando de lado os detalhes, constatamos que o controle direto sobre a região atualmente ocupada pelo Iraque não pôde ser obtido com rapidez, e houve momentos, por exemplo, em que os iranianos conseguiram recapturar territórios perdidos, entre eles a própria cidade de Bagdá. Pela altura do século VIII, contudo, a atual fronteira iraquiano-iraniana, que era então a fronteira otomano-persa, já era mais ou menos a mesma de hoje.

Cabe supor, entretanto, que a partir de 1689, quando os exércitos otomanos invasores fracassaram na tentativa de tomar Viena, o Império Otomano já estava em declínio, deixando de conquistar territórios aos europeus e passando a perdê-los para eles. Chegado o século XIX, o outrora poderoso Império Otomano passou a ser conhecido como "o doente da Europa", o que certamente era verdade no que diz respeito à parte européia do império. O território da Grécia foi gradativamente perdido a partir da década de 1830, e na década de 1850 a Sérvia também viria a recuperar considerável grau de independência. Depois da década de 1870, o fio d'água transformou-se em enchente, e por volta de 1913 já estavam perdidas quase todas as possessões otomanas na Europa.

Mais de 500 anos após as primeiras conquistas otomanas nos Bálcãs, as possessões otomanas periféricas no norte da África também haviam sido perdidas. A partir da década de 1830, os franceses conquistaram áreas cada vez maiores do atual território da Argélia; no início do século XX, territórios que hoje constituem países como a Líbia e a Tunísia também haviam caído sob controle europeu.

Mas a maior perda dos otomanos terá sido provavelmente o Egito, cujo controle efetivo perderam já na década de 1820. (Cabe aqui lembrar que a soberania otomana teórica e nominal sobre o Egito durou até 1914.) A primeira derrota deu-se frente a um muçulmano albanês de implacável poder conquistador, Mehmet Ali. Sua chegada ao poder no Egito na década de 1820 foi um desastre quase completo para os otomanos, pois ele conquistou não apenas o Egito, como também boa parte dos territórios hoje ocupados pela Palestina (inclusive Israel), o Líbano e a Síria. Era um passo suficientemente largo para deixar preocupados os dirigentes europeus, de tal modo que, sofrendo grande pressão, Mehmet foi obrigado a devolver suas conquistas fora do Egito; mas o fato é que nunca mais o Egito voltaria ao controle otomano direto.

Com a construção do canal de Suez pela França e o Egito, tiveram início muitas décadas de direta interferência européia na região, culminando, em 1914, com a pura e simples anexação do Egito pela Grã-Bretanha, então em guerra com o Império Otomano.

A importância do canal de Suez para os britânicos não pode ser subestimada: até o grande desastre de 1956, o canal provavelmente constituía — ao lado da Índia, a jóia da coroa do Império Britânico — a mais importante posição estratégica a ser protegida e defendida pelo império. Até que tivesse início a produção de petróleo no Iraque, em 1927, nenhuma outra possessão britânica teria importância comparável à do canal de Suez. O motivo disto estava no fato de reduzir drasticamente, e de maneira muito conveniente, o tempo levado pelas embarcações britânicas — fossem navios de passageiros, cargueiros ou navios de guerra da marinha real — para fazer o percurso entre a Grã-Bretanha e a Índia. A partir do momento em que os navios britânicos não mais precisavam contornar todo o território africano para fazer este percurso vital, o canal de Suez tornou-se a mais importante de todas as artérias imperiais.

Como sabem os admiradores de Rudyard Kipling (especialmente de Kim), o maior rival da Grã-Bretanha na Ásia central no século XIX era a Rússia. Era a época do "Grande Jogo", no auge da rivalidade entre espiões britânicos e russos em regiões as mais obscuras do Hindu Kush. (O que fica patente na estranha forma territorial do Afeganistão, a zona neutra entre os dois impérios.) A Rússia não constituía uma ameaça para os britânicos apenas no Himalaia, mas também nos Bálcãs. Os russos tinham motivos para se considerar a potência guardiã dos súditos otomanos predominantemente cristãos ortodoxos da região balcânica. Assim é que boa parte do século XIX foi ocupada pela chamada "questão oriental", o desejo da Rússia de expandir-se e criar Estados clientes nos Bálcãs, por um lado, e por outro o empenho das potências européias, entre elas a Grã-Bretanha, no sentido de impedir esta expansão.

O maior anteparo contra a expansão russa nos Bálcãs era o Império Otomano. Foi para conter a Rússia que a Grã-Bretanha e outros países europeus passaram décadas escorando o doente da Europa, não tanto porque desejassem ajudar um império muçulmano repressor, mas por temerem as conseqüências da expansão imperial russa. Analisando retrospectivamente, constatamos que foi um erro; como denunciaria no fim do século XIX o primeiro-ministro britânico Salisbury, o país estava na realidade apostando no cavalo errado.

Tudo isto está estreitamente ligado ao Iraque, pois a matriz do Império Otomano permaneceu sob firme controle otomano até 1918. Estavam aí incluídos os territórios árabes centrais do Hijaz (a parte ocidental da península Arábica, à beira do mar Vermelho), onde ficam as cidades sagradas islâmicas de Meca e Medina, a Palestina, a Síria e a região então conhecida como Mesopotâmia (que hoje chamamos de Iraque). Quando teve início em 1914 a guerra em defesa do Império Otomano, a maioria dos árabes manteve-se leal a seus soberanos muçulmanos, os otomanos; os curdos também tomaram o seu lado e, estimulados pelos otomanos, massacraram centenas de milhares de armênios. Por isto é que tendo instintivamente a desconfiar da escola historiográfica que poderíamos denominar escola da inevitabilidade, segundo a qual o fim do poderio turco foi uma bênção — chegando inclusive a discordar do grande e justificadamente festejado autor Bernard Lewis e dos muitos trabalhos sobre o Islã que escreveu antes e depois do 11 de setembro.

É inegavelmente um fato histórico que o Império Otomano na Europa começou a declinar em 1689, e que, não fosse a ajuda britânica (e em parte também francesa e austro-húngara), teria sucumbido completamente a insurreições apoiadas pelos russos a partir da década de 1820. Seja como for, só em 1913, com a primeira guerra balcânica, os otomanos vieram a ser decisivamente expulsos da maior parte dos Bálcãs, muito embora, na segunda guerra balcânica, naquele mesmo ano, conseguissem recuperar pequena parte do território perdido. A mesma tendência de declínio do domínio otomano pode ser constatada na África a partir da década de 1830, com a perda da Argélia, levando até a perda da Líbia pouco antes da Primeira Guerra Mundial.

Seja como for, até 1918 os territórios centrais do Oriente Próximo (para usar uma expressão muito empregada na época) permaneceram sob firme controle otomano. E mais: embora o império tivesse perdido certos territórios caucasianos para a Rússia no início do século XIX, sua fronteira com o Irã não chegou a ser afetada desde então.

Apesar disso, tendo em vista a crescente debilidade dos otomanos, os britânicos e os franceses estavam constantemente exortando à adoção de reformas na viciada administração do império. O que teria algumas boas conseqüências — em termos políticos, o domínio otomano tornou-se mais eficiente — e outras ruins — em termos econômicos, o império estava quase falido, deixando de honrar em 1875 dívidas gigantescas. Não muito depois, uma grande rebelião nos Bálcãs levou a uma invasão russa. Só a intervenção das outras potências européias no Congresso de Berlim, reunido em 1878 para evitar a expansão russa e dar sustentação ao cambaleante Império Otomano, permitiu a sobrevivência do império. Cabe notar, entretanto, que esse declínio se verificava na parte européia do império, cujos habitantes eram em sua maioria cristãos ortodoxos. Nenhuma rebelião em larga escala como essa ocorreu no núcleo predominantemente islâmico dos domínios otomanos no Oriente Próximo.

Até o fim do século XIX, a maior parte do Império Otomano era controlada por gestão indireta, como no Raj* britânico na Índia. Neste, os britânicos usavam marajás e outros governantes nativos, ao passo que os otomanos restabeleceram grande parte do poder dos magnatas locais. Todavia, a administração indireta freqüentemente gerava graves problemas de ineficiência e corrupção — o que potencialmente significava um risco, pois até os magnatas que ostensivamente ofereciam maior lealdade nem sempre estavam totalmente livres das seduções da rebelião. Em conseqüência, foi necessário instituir um grau muito maior de administração direta, o que indispôs muitos dos dirigentes locais, que até então podiam fazer mais ou menos o que bem queriam, sem a interferência de Constantinopla. Assim foi que a eficiência também gerou insatisfação cada vez maior.

Pior ainda, a centralização também acarretou uma crescente "turquificação", ou qualquer outro nome que se queira dar ao fenômeno. Até o fim do século XIX, o Império Otomano, apesar de etnicamente heterogêneo, era sobretudo um império muçulmano. Quaisquer que fossem seus muitos defeitos, entre eles uma eventual tendência a massacrar seus próprios súditos, os otomanos praticamente não alimentavam preconceitos contra os povos não turcos. Muitos dos ilustres vizires e outros graduados funcionários otomanos provinham dos diferentes grupos raciais, étnicos e religiosos que constituíam o império. Qualquer que fosse, entretanto, a origem dos altos funcionários, o fato é que, com o passar do tempo, eles eram sobretudo bons muçulmanos. Além disso, o fato de o sultão otomano, apesar de não ser árabe, ser igualmente califa dos fiéis significava que muitos súditos muçulmanos do Império Otomano, quaisquer que fossem suas origens, sentiam-se espiritualmente ligados a seu governante. É significativo que, à parte os muçulmanos bósnios e a maioria dos albaneses, o mesmo não acontecesse no perímetro europeu do império. O fato de o fenômeno se dar nos territórios árabes constitui uma significativa diferença.

Depois de 1908, contudo, transformando-se o Comitê de União e Progresso (CUP) numa força capaz de promover reformas, viria a aumentar constantemente o número de funcionários muçulmanos devotados que também eram turcos. Embora grande parte dos primeiros nacionalistas árabes proviesse de minorias cristãs nada inclinadas a aceitar um domínio muçulmano, muito menos turco, os árabes muçulmanos, que não haviam tido problemas com a soberania otomana, também começaram a considerá-la opressora.

À medida que aumentava o poder do CUP, também conhecido como movimento dos Jovens Turcos, paralelamente ao chauvinismo turco, a situação do Império Otomano continuou a declinar. A instabilidade do governo otomano levou a Áustria-Hungria a anexar a Bósnia e a Herzegovina; revoltas eclodiram nos Bálcãs; e as grandes potências mantinham-se permanentemente de olho nos territórios otomanos remanescentes.

Durante a maior parte do século XIX, o Império Otomano fora sustentado graças ao apoio da Grã-Bretanha e da França. Lembram-se da guerra da Criméia? Os britânicos e os franceses lutaram ao lado dos otomanos contra o velho inimigo desse império, a Rússia. No início do século XX, contudo, verificou-se uma grande revolução diplomática. Tradicionalmente, a Grã-Bretanha considerava a Rússia um inimigo, especialmente na Índia, onde os dois impérios entraram em confronto. Em 1907, no entanto, o Reino Unido e o império russo resolveram todas as suas disputas e se reconciliaram. A guerra nos remotos desfiladeiros e montanhas do Hindu Kush deixava de ser uma possibilidade.

Essas reaproximações tiveram uma conseqüência adicional inesperada. Tanto a Rússia quanto a França há muito mostravam-se altamente desconfiadas — com razão, caberia dizer — do agressivo e expansionista império alemão, governado pelo desequilibrado Kaiser (imperador) Guilherme II, um homem sedento de glória. Ele havia cortejado ativamente o Império Otomano, do qual a Grã-Bretanha e a França haviam capturado nas décadas anteriores aquelas que os otomanos consideravam as jóias de sua coroa: a Argélia, o Egito, Chipre e mais tarde o Marrocos.

Por volta de 1911, o Império Otomano tremia nas bases em conseqüência dos atritos em suas próprias terras, das intrigas políticas internas e da ameaça de uma Alemanha cada vez mais ativa. A França, a Grã-Bretanha e a Rússia estavam agora alinhadas. O CUP precisava desesperadamente de um aliado, e fez movimentos na direção da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha, que não se mostraram interessadas numa aliança com os otomanos, embora Winston Churchill apoiasse a proposta no parlamento.

Em 1911, Churchill acabava de ser nomeado primeiro lorde do almirantado, o chefe político da poderosa marinha real. Ele entrara para a política em 1900 como membro do Partido Conservador — o mesmo em que seu pai, lorde Randolph Churchill, fora destacado membro na década de 1880. Mas Winston acabou mudando de lado, passando-se para os liberais por causa da questão do livre-comércio, iniciativa que, embora perfeitamente coerente com suas convicções, deu-lhe fama de inconstância política. Ele passou a chefiar uma secretaria ministerial no governo liberal que assumiu o poder em 1905, e logo viria a integrar o gabinete como ministro do Interior, encarregado da manutenção da ordem. Foi quando seus métodos discutíveis — como o emprego de força militar excessiva para reprimir uns poucos anarquistas — agravou sua fama de temperamento algo aventureiro. Sua orientação política tornou-se cada vez mais radical, sendo seu maior aliado no governo David Lloyd George, o inflamado dirigente radical galês que, como ministro da Fazenda, praticamente lançou o Estado previdenciário a partir de 1908 e 1909.

Um dos problemas no exame de uma figura extraordinária como Winston Churchill é que tendemos a ver tudo pelo prisma de seus anos heróicos de primeiro-ministro, entre 1940 e 1945; facilmente esquecemos que durante boa parte da vida ele era considerado um gênio caprichoso, indubitavelmente brilhante, mas totalmente destituído de discernimento. Para começo de conversa, embora Churchill fosse um dos mais destacados membros do Partido Liberal no parlamento durante o período abarcado por este livro, ele começara sua vida política nas fileiras dos conservadores, tal como seu pai, como já mencionamos. Ninguém gosta de vira-casacas, e a maioria dos conservadores que participaram da coalizão de guerra com os liberais de David Lloyd George consideravam Churchill um traidor. Na realidade, após o fim de nossa história, em 1922, Churchill mais uma vez mudaria de partido, voltando às fileiras conservadoras. Fica evidente, assim, sua visão basicamente pragmática da questão partidária, o que não podia ser apreciado pelos ideólogos que costumam formar o núcleo de qualquer partido.

Da mesma forma, embora tanto admiremos as ousadas histórias de Churchill na África do Sul, os fascinantes livros que ele escreveu sobre suas muitas proezas como soldado deixam a impressão de um narcisista muito bem dotado para a autopromoção. Muitas pessoas preferem o indivíduo sólido e estável que, sem poder oferecer a mesma excitação, parece mais confiável e de pés no chão. Churchill teve de sofrer até 1930 com a fama de aventureiro e político sem discernimento e portanto indigno de confiança. Isto talvez não importasse tanto se as coisas tivessem corrido bem para ele; mas na Primeira Guerra Mundial elas saíram espetacularmente errado, com conseqüências quase fatais para sua carreira política.

Em 1914, a Rússia entrou em guerra com a Alemanha; a Grã-Bretanha e a França se alinharam com a Rússia; e o Império Otomano viu que tinha um problema nas mãos. Até então, a Grã-Bretanha e a França vinham protegendo os otomanos, precisamente contra a Rússia. Agora os russos, os britânicos e os franceses estavam todos do mesmo lado, e os otomanos mostravam-se profundamente divididos entre permanecerem neutros ou entrarem na guerra do lado da Alemanha. Foi quando o jovem e ambicioso Winston Churchill, primeiro lorde do almirantado, mobilizou a esquadra britânica sem autorização do gabinete e capturou dois importantes navios de guerra que estavam sendo construídos em estaleiros britânicos para a esquadra otomana, entregando-os à real marinha britânica. As intrigas que então se multiplicavam por toda parte obscurecem o impacto que a iniciativa de Churchill pode ter tido na decisão, que logo depois seria tomada pelos otomanos, no sentido de se alinhar com a Alemanha em sua guerra contra a Grã-Bretanha, a França e a Rússia.





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