Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

VEJA Roberto Pompeu de Toledo Do sonho de 1968 à realidade do mensalão


José Dirceu virou símbolo não da glória,
mas da perdição de uma geração

O clima na Câmara dos Deputados era quase de velório no exato momento em que se selou a sorte do deputado José Dirceu. O plenário estava esvaziado. Muitos deputados, cumprida a obrigação de votar, tinham corrido ao aeroporto, para não perder o vôo ao estado de origem. Outros tinham ido embora porque talvez não quisessem mesmo assistir ao esperado desfecho. Quando, na apuração a que se procedia na Mesa, se chegou ao voto "sim" de número 257, o que configurava uma maioria absoluta em favor da cassação, não houve uma única manifestação.

Não seria mesmo de bom-tom repetir as explosões de euforia com que o lado vencedor costuma saudar o momento em que se definem as votações importantes na casa. Afinal, era a cabeça de um colega que rolava. Mas que alguém sussurrasse uma expressão de agrado ou desagrado, que voltasse os olhos para o companheiro ao lado, em sinal de aprovação ou desaprovação, ou que fizesse um sinal de cabeça – isso, pelo menos, seria de esperar. Nada. Na mesa da Câmara, que era mostrada por inteiro na TV, e onde se apinhavam os deputados encarregados da apuração e da fiscalização, além dos curiosos, ninguém se importou em dar sinal de que a sorte estava selada. José Dirceu, como no verso célebre de T.S. Eliot, teve sua morte política decretada "não com um estrondo, mas com um murmúrio".

Convinha que assim fosse, e não apenas pelo dever de discrição, pelo desgosto ou pelo cansaço, que eventualmente acometiam a Câmara – havia outros motivos, mais profundos, para tristeza. Dirceu gosta de se instituir em personificação da geração de 1968. Nos momentos cruciais, ele, como Clark Kent quando vira Superman, abre o paletó e exibe a fantasia de ícone da geração do sonho e da rebeldia. Foi assim no discurso emocionado com que tomou posse como ministro e assim também em vários momentos quando, já tragado pelas denúncias que haveriam de perdê-lo, fez discursos em sua defesa. Há um tanto de exagero, e outro tanto de irritante pretensão, nessa sua mania. Mas vá lá – concedamos em tomá-lo como símbolo dos moços e moças do belo e doido ano de 1968. Nesse caso, e tendo em vista sua atuação no poder, ele terá cumprido um ciclo que descreve não a glória, mas a queda de uma geração, sugada pelas vilezas da idade madura e pelas perversidades da política brasileira.

Quem foi moço em 1968 e nos três ou quatro anos seguintes se lembra de um tipo de sobressalto que costumava assaltá-lo no período. Olhava-se para o companheiro de faculdade ou de emprego que ultimamente vinha exibindo hábitos diferentes e indagava-se a si mesmo "Será que ele aderiu?". A dúvida era se ele tinha aderido à luta armada contra a ditadura. E a dúvida seguinte era: "Será que devo aderir também?". Nos meios onde circulava a juventude mais politizada, ébria de desejo de justiça, de contestação e de Che Guevara, tais dúvidas eram freqüentes e mortificantes.

As décadas se passaram e, hoje, quando aqueles antigos moços olham para o companheiro que mudou de hábitos e se perguntam "Será que ele aderiu?", a adesão a que se referem é à corrupção. "Será que ele também?". Para alguns, a questão seguinte será: "Estarei bancando o bobo não aderindo igualmente?". O aceno antigo era por uma adesão equivocada, mas movida a utopia. O de hoje é o aceno do bas-fond das transações tenebrosas. Dirceu foi um ícone da utopia, a aceitá-lo como personificação de 1968. Acabou cassado por corrupção, ainda que não em proveito próprio. Pode agora ser tido como símbolo da perdição de uma geração.

A desgraça do ex-capitão do time começou com um apelo vulgar, "Sai daí, Zé", proferido pelo antigo aliado Roberto Jefferson, e terminou com uma manifestação que até se diria cavalheiresca, se não doesse no lombo – as bengaladas que lhe desferiu, na véspera da cassação, um senhor bem-composto, de respeitável barba branca, que depois se soube chamar-se Yves Hublet e ser autor de livros infantis. Se o apelo de Jefferson traía o escracho característico da vida parlamentar nos dias que correm, a agressão de Hublet, até pela arma que escolheu, lembrava a nobreza vetusta do Parlamento do Império. Talvez isso queira dizer alguma coisa, sabe-se lá, mas o que quer dizer muito, isso sim, foi o insulto lançado pelo agressor da bengala contra sua vítima. "Frestão!, Frestão!", gritava ele, enquanto brandia o instrumento de cabo prateado em forma de cabeça de pássaro que tinha nas mãos.

O agressor não chamou Dirceu de Dom Quixote. Chamou-o, ao contrário, pelo nome do arquiinimigo do cavalheiro da Mancha, o mago Frestão, cujos poderes perfidamente transformaram em moinhos de vento os gigantes contra os quais Quixote havia investido, no momento mesmo em que estava a ponto de derrotá-los. Dirceu não foi identificado ao campeão das utopias, ainda que loucas, encarnado, há quatro séculos, pelo herói de Cervantes. Foi chamado, em vez disso, pelo nome do trapaceiro dos truques rasteiros. Cumpria-se, na escolha do agressor, parábola similar à que conduz do sonho de 1968 à realidade do mensalão.

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