Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

VEJA A politização do STF

O partido da toga é um risco

As ambições políticas de Jobim, associadas
a decisões polêmicas do tribunal, criam um
mal-estar que só ajuda a desmoralizar a corte


Otávio Cabral


Montagem sobre fotos de Ricardo Stuckert/Ana Araujo/Alex Silva/AE
DE SENTENÇA E URNA
Maurício Corrêa, que vivia de olho no governo do DF, Francisco Rezek, que saiu e voltou, e Jobim: repúdio

Na quarta-feira passada, o senador Jefferson Peres (PDT-AM), que é advogado por formação, apresentou um projeto para alterar a forma como é composto o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte jurídica do país. Os onze ministros são nomeados pelo presidente da República. Em seu projeto, o senador diz que o atual sistema de composição do tribunal segue apenas a "conveniência política", o que explica as recentes manifestações de "politização exagerada do STF". No dia anterior, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade que representa os 11.300 juízes estaduais do país, divulgou uma pesquisa mostrando a opinião de seus associados sobre o STF. Os resultados são preocupantes. Os juízes acham o STF lento, parcial, caro e vulnerável às pressões do governo e do mercado – e também não gostam da forma como é composto. A coincidência cronológica entre a proposta do senador e a pesquisa da AMB não significa que o STF esteja na iminência de ser alterado. Mas é um sinal claro de que seu funcionamento está começando a chamar atenção – e a incomodar.

A atual safra de suspeitas quanto à lisura política do STF foi inaugurada pela atuação desabrida de seu presidente, o ministro Nelson Jobim. Gaúcho, 59 anos, Jobim chegou ao STF em abril de 1997, por indicação do então presidente Fernando Henrique Cardoso, e inclusive ganhou o apelido de "líder do governo tucano" no STF. Com a mudança de comando no Palácio do Planalto, Jobim também mudou – e virou um homem muito próximo do PT. Tornou-se interlocutor do presidente Lula, passou a trocar idéias com assiduidade com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. No fim de julho, chegou ao ápice petista quando, diante dos primeiros arrulhos de um eventual pedido de impeachment de Lula, saiu destemperadamente a favor do presidente. "O país ficará ingovernável nos próximos dez anos se a oposição tentar derrubar Lula", disse. Com esse passado politicamente atuante, os recentes votos de Jobim favoráveis aos reclames de José Dirceu produziram a suspeita de que o ministro vinha votando movido por interesses partidário e pessoal, e não por respeito aos códigos legais do país.

Na semana passada, outro que carreou suspeitas da mesma estirpe foi o ministro Sepúlveda Pertence, dadas suas notórias relações de amizade com o ciclo de José Dirceu, a quem vinha beneficiando em suas decisões. No clima exacerbado pelas desconfianças políticas, os dois, Jobim e Pertence, reagiram. "Os idiotas perderam a modéstia", atacou Jobim, parafraseando o dramaturgo Nelson Rodrigues. Pertence, por sua vez, ao julgar um novo caso sobre José Dirceu na semana passada, chamou seus críticos de "néscios". O que há em comum entre Jobim e Pertence parece ser o vôo de um inseto do qual todo magistrado deveria manter distância máxima – a mosca azul do poder. Para a disputa presidencial de 1998, Sepúlveda Pertence, que é ministro do STF desde maio de 1989, por indicação do presidente José Sarney, chegou a ser incensado em manifestações públicas, em reuniões políticas e até em encontros jurídicos como possível candidato ao Palácio do Planalto – um cortejo ao qual, diga-se, o ministro se submeteu com doce constrangimento, provocando indisfarçável mal-estar no STF.

Nelson Jobim, no entanto, despreocupa-se até mesmo de guardar as aparências e já não esconde as pretensões políticas. Ex-deputado pelo PMDB, Jobim acha que pode ser candidato a presidente em 2006, pelo PMDB. É óbvio que todo cidadão brasileiro que esteja no gozo de seus direitos políticos pode ter ambições políticas, mas o presidente da mais alta corte do país, ao fazê-lo, comete vários pecados: inferioriza o poder que comanda em relação ao Palácio do Planalto, destroça a liturgia de seu cargo à medida que passa a habitar o mundo da política partidária do qual se recomenda que magistrados fiquem distantes e pulveriza a imagem de distanciamento e imparcialidade que convém a um juiz. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, que serve de inspiração para o STF brasileiro, é inimaginável pensar que um ministro possa deixar o cargo para ser candidato. A lei americana, tal como a brasileira, não impede que isso aconteça, mas não há registro na história dos EUA de que alguém tenha feito esse movimento exótico. Mas, se a Suprema Corte americana, assim como o STF, nasceu das teses de Montesquieu sobre a independência entre os poderes, por que lá a corte não degenerou em politicagem?

"A diferença é de costumes, de tradição", diz Fernando Albino, professor de direito constitucional da PUC de São Paulo. "Uma corte suprema vive do conhecimento jurídico, da independência e da isenção de seus ministros. Se um desses pilares for abalado, como no caso de uma aventura de um ministro pela política, a credibilidade do tribunal fica abalada. O órgão não aceita isso, a comunidade jurídica não aceita isso." Mesmo aqui, porém, a comunidade jurídica rejeita esse tipo de postura. A desenvoltura política de Jobim, por exemplo, já tem o repúdio formal de juízes do Rio Grande do Sul, que lançaram o "Manifesto pela ética", que logo ganhou o apoio da direção da AMB. Eles pediam que Jobim afastasse definitivamente a idéia de ser candidato ou então renunciasse ao comando da corte. O STF já passou pela vexatória situação em que o ministro Francisco Rezek, então membro do tribunal havia sete anos, deixou o cargo para ser chanceler de Fernando Collor, ficou apenas 25 meses no governo e, depois, voltou a ser nomeado para o STF. Foi uma desmoralização para o tribunal, mas não evitou que desvarios políticos se repetissem.

No fim de 1997, Maurício Corrêa, ministro do STF, buscou apoio para candidatar-se ao governo do Distrito Federal e deu até entrevista a jornais locais admitindo a possibilidade. Por razões assim, a composição do tribunal começa a incomodar, a ponto de produzir uma proposta concreta saída da pena do senador Jefferson Peres. Em sua proposta, o STF deveria ser composto de ministros eleitos pelo próprio tribunal a partir de uma lista de seis nomes enviada por associações de juízes, promotores e advogados. Na Suprema Corte americana, quem indica os ministros também é o presidente da República, mas o Congresso analisa cada indicação com lupa. Desde 1789, já houve doze rejeições e cerca de trinta nomes foram retirados pelo presidente diante da evidência de que seriam rejeitados – como, aliás, acaba de acontecer com a ex-candidata Harriet Miers, abatida em pleno vôo devido às suas posições pouco claras de oposição ao aborto e ao casamento gay, temas caros à direita cristã de George W. Bush. Aqui, nada parecido ocorreu. Na história, só cinco nomes para o STF foram rejeitados – e todos durante o governo Floriano Peixoto (1891-1894), por causa de querelas políticas.

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