Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

VEJA Dirceu fica sem direitos políticos até os 70 anos

É apenas o começo

Cassação de Dirceu, de tão arrastada, pode
soar banal, mas é um sinal devastador da força
da crise que ainda vai ceifar mais cabeças


Otávio Cabral

 

Dida Sampaio/AE
Dirceu, cassado até os 70 anos: apenas o começo das punições


A insistência de José Dirceu em salvar a própria pele, associada à certeza generalizada de que seria cassado, talvez tenha produzido a sensação de que o desfecho de seu caso foi apenas uma banalidade longamente esperada. Na verdade, foi um espanto. É um espanto que esteja inapelavelmente cassado, inelegível até 2015, o político que até muito pouco tempo atrás era o ministro todo-poderoso da República, o homem mais solicitado do poder federal depois de Lula, o "capitão do time" de um presidente alçado ao poder com a maior votação da história eleitoral do país. É um espanto constatar que uma figura da expressão política que José Dirceu chegou a alcançar tenha sido tão rapidamente reduzida às cinzas de um deputado menor como Roberto Jefferson, que, cassado há doze semanas, sumiu de cena. A cassação de Dirceu, aprovada com o voto de 293 deputados, só vinte a menos que a de Jefferson, é o dado mais eloqüente de que a crise do mensalão se tornou imensa. Tão imensa que é capaz de nocautear de modo irremediável – primeiro, do governo; agora, da vida pública – um protagonista antes vital na genealogia do poder em Brasília.

O ato de cassação do mandato de Dirceu, numa outra prova da enormidade da crise deflagrada pelo mensalão, é apenas o início do calvário das punições. Como Dirceu é o peixe mais graúdo da safra, sua punição pode parecer a culminância do processo, mas na verdade a fila da guilhotina só agora começa a se formar. Até aqui, além de Dirceu e Jefferson, apenas um deputado chegou ao fim do processo. Foi Sandro Mabel, do PL de Goiás, que acabou absolvido por falta de provas no plenário. Nas próximas três semanas, a Câmara pretende votar a cassação de outros cinco deputados. Entre eles, o nome mais cintilante é o do deputado João Paulo Cunha, do PT de São Paulo, que chegou a presidir a Câmara entre 2003 e 2004. João Paulo foi pilhado mandando sua mulher abiscoitar 50.000 reais das contas de Marcos Valério. Se for cassado, será o terceiro presidente da Câmara a cair na história – depois de Ibsen Pinheiro, também cassado por corrupção em 1994, e Severino Cavalcanti, que renunciou ao cargo ao ser flagrado cobrando propina de um empresário. O caso dos demais parlamentares (dez, ao todo) só deverá ser julgado pela Câmara em 2006.

 

Ana Araújo
Jefferson, uma figura menor: cassado, sumiu de cena

A cassação de Dirceu, naturalmente, foi resultado de um julgamento político, e não de um tribunal jurídico. Tanto que Jefferson foi cassado por 313 votos sob a acusação formal de não ter conseguido provar a existência do mensalão – e Dirceu foi cassado justamente por ter sido o mentor do esquema do mensalão. Num tribunal jurídico, essa contradição seria equivalente ao crime sem cadáver e, portanto, invalidaria o processo. Não é o que ocorre na Câmara, onde o que se faz é uma análise de fundo político, baseada em convicções e aparências políticas. Na prática, sabe-se que Jefferson, a despeito do que dizia o relatório que pediu sua cassação, perdeu o mandato porque, entre outras coisas, confessou candidamente um crime – ter recebido 4 milhões de reais de dinheiro clandestino. No caso de Dirceu, o relatório que pediu sua cassação lista sete acusações. São elas: comandar o pagamento do mensalão, participar da farsa dos empréstimos bancários ao PT, traficar influência para beneficiar sua ex-mulher, beneficiar um banco com crédito consignado, contemplar outro com investimentos de fundos de pensão, defender interesses patrocinados por Marcos Valério e, por fim, ter um assessor na lista dos regalados com dinheiro do valerioduto.

Em seu último dia como deputado, José Dirceu acordou cedo, por volta das 6 da manhã, mas já não parecia acreditar em vitória. Fez uma hora de esteira, tomou café-da-manhã e passou a atender deputados em sua casa, sem grande entusiasmo. Todos os deputados que recebeu lhe prometeram apoio, mas Dirceu ironizou: "Se eu confiasse em promessa de político até ficaria com esperança de me salvar". Ainda em casa, deu entrevista retransmitida para várias emissoras de rádio do Pará e recebeu policiais da Câmara para prestar depoimento no processo contra o escritor Yves Hublet, que lhe atingira com três – precisos, secos – golpes de bengala no dia anterior. Depois, almoçou com Maria Rita, sua mulher, e o deputado Sigmaringa Seixas, do PT do Distrito Federal. Pela TV, assistiu à sessão do Supremo Tribunal Federal que rejeitou seu último pedido para postergar ainda mais seu julgamento e, das 16 às 18 horas, ficou trancado em seu quarto preparando as linhas gerais de seu discurso de despedida. Na tribuna da Câmara, falou por 32 minutos, mas acabou se arrependendo de sua fala. Achou que se repetiu muito e fez uma defesa bastante longa do governo.

Quando eram quase 22 horas, o deputado Arlindo Chinaglia, do PT paulista, mostrou a Dirceu a planilha de votos, informando que sua cassação seria aprovada, na melhor das hipóteses, por 275 votos – e Dirceu então entregou os pontos. Foi para casa, onde acompanhou pela TV o fim da votação, sem atender a telefonemas. Quando o resultado final foi proclamado – 293 votos pela cassação, 192 contra, 8 abstenções, 1 voto em branco e outro nulo –, Dirceu voltou-se para um amigo que também acompanhava a transmissão pela TV e desabafou: "Não recebi nenhum telefonema do Lula, ele não me mandou nem ao menos um recado. Ninguém do governo me procurou. Eles têm muita confiança no meu silêncio. Dá vontade de começar a contar um pouco do que sei". O desabafo, visto como uma ameaça, tem força nula – quem quer que conheça José Dirceu não aposta uma pataca em que venha a contar tudo o que sabe. Mas, como descrição do empenho do governo em seu favor, seu desabafo é uma perfeição: o governo, ao contrário do que chegou a ser comentado aqui e ali, não moveu uma palha para tentar salvar a pele de seu ex-capitão.

 

Ricardo Stuckert
O ministro Jaques Wagner e o presidente Lula, alvos da irritação de Dirceu: o ministro porque foi falso; o presidente porque foi indiferente

O presidente Lula chegou a dar ordens expressas a seus ministros mais atuantes politicamente para que não usassem o peso do cargo na tentativa de amealhar votos favoráveis a Dirceu. Lula avaliou que seu governo não deveria arriscar-se ao desgaste público de ser pilhado tentando salvar o mandato de Dirceu – e, em contrapartida, Lula está convencido de que seu ex-ministro jamais iria materializar ameaças de contar tudo. Ao tomar a decisão de abandonar Dirceu à própria sorte, Lula teve o apoio de Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, e de Marco Aurélio Garcia, seu assessor para assuntos internacionais. Nos últimos dias, o ministro e o assessor vinham conversando quase que diariamente com Dirceu e sabiam que podiam contar com a discrição do ex-ministro mesmo que o governo não lhe jogasse uma bóia de salvação. Como sempre ocorre no governo, porém, houve um racha. A ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, ao lado do secretário-geral, Luiz Dulci, tinha opinião contrária. Os dois entendiam que o governo, mesmo sem o risco de ser chantageado, tinha a obrigação política de atuar em favor de Dirceu. Foram derrotados.

O deputado cassado José Dirceu pode levar seus segredos para o túmulo, mas não esconde sua insatisfação com o modo como foi tratado. Está irritado com o presidente Lula, de quem esperava pelo menos gestos mais fraternos. Depois da cassação, Lula telefonou para o ex-ministro e, numa conversa de pouco mais de um minuto, prestou-lhe solidariedade e não demonstrou um pingo de preocupação com seu futuro. Outro que irritou Dirceu foi o ministro Jaques Wagner, da Coordenação Política. Dirceu acha que o ministro espalhou para jornalistas amigos que estava atuando em sua defesa apenas para ficar bem com uma certa ala do PT e com ele próprio, Dirceu. Mas o deputado cassado diz que, na verdade, Jaques Wagner não fez nada a seu favor. Acha também que o senador Aloizio Mercadante não fez o que poderia e, quando o defendeu, foi apenas para granjear apoio à sua pretensão de disputar a indicação de candidato do PT ao governo de São Paulo em 2006. Se parte dos petistas só lhe trouxe mágoa, Dirceu mostra-se grato a nomes de outros partidos: o ex-presidente José Sarney e o deputado Jader Barbalho são alguns dos parlamentares que, na opinião do cassado, tentaram ajudá-lo de fato.

 

Ed Ferreira/AE

"Não recebi nenhum telefonema do Lula, ele não me mandou nem ao menos um recado. Ninguém do governo me procurou. Eles têm muita confiança no meu silêncio. Dá vontade de começar a contar um pouco do que sei."
José Dirceu, ao saber do resultado de sua cassação pela TV

Com a perda de seus direitos políticos até os 70 anos, José Dirceu virou um paradoxo ambulante dentro do PT – além de ser o primeiro petista na história a sofrer esse tipo de punição. Junto com Lula, Dirceu foi o principal artífice da transformação do PT numa máquina eleitoral cujo objetivo central era chegar ao Palácio do Planalto. Foi sob sua batuta que o PT, gradualmente, foi virando uma legenda cuja vida interna só ganhava impulso real em razão das eleições – e, num partido assim, tão parecido com os demais, só se obtêm prestígio e influência interna quando se tem voto e mandato. Pois agora tudo que Dirceu não poderá oferecer ao PT são justamente voto e mandato, o binômio que ele mesmo ajudou a alçar à condição de preciosidades políticas. Fica difícil prever seu futuro nessas condições. Mas Dirceu já tem planos: escreverá um livro sobre o período em que chefiou a Casa Civil, abrirá um blog na internet para dar sua visão dos acontecimentos políticos e se associará a um escritório de advocacia em São Paulo. No início da semana, ele já começa a executar o projeto do livro.

 

Joedson Alves/AE

Paulo Amorim/AE

Sarney (acima) e Barbalho: os dois integraram a tropa que fez a defesa de José Dirceu
O deputado cassado planeja viajar para uma praia isolada do Rio de Janeiro, na companhia do jornalista e escritor Fernando Morais, seu amigo, biógrafo oficial e defensor incansável. Por dez dias, Morais pretende entrevistá-lo, a um ritmo de dez horas diárias, a fim de produzir um livro em primeira pessoa, cujo título deve ser Trinta Meses, numa referência ao período em que Dirceu chefiou a Casa Civil. Apesar do título cronologicamente restritivo, a obra abrangerá um período mais longo da trajetória de Dirceu, começando com a campanha eleitoral vitoriosa de Lula em 2002 e terminando com a cassação do autor, em dezembro de 2005. Livros de memória são sempre uma incógnita: podem ser desde um inofensivo passeio pelas lembranças de quem sai de cena até uma feroz coleção de segredos revelados por quem se recusa a deixar os holofotes. De novo: a tranqüilidade com que o Palácio do Planalto recebeu a notícia do projeto do livro sugere que Dirceu deve optar por fazer um relato um pouco mais consubstanciado do que já se sabe, poupando o governo de confissões explosivas.

 


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