Livro sobre Henrique Lott revela uma
figura ímpar em seu tempo: um militar
brasileiro sem vocação para o golpe
Jerônimo Teixeira
Divulgação |
Juscelino Kubitschek e Henrique Lott: o general garantiu a posse do presidente eleito |
Militar de hábitos rígidos, Henrique Lott costumava dormir antes das 21 horas. No dia 10 de novembro de 1955, porém, o general não conseguiu pregar o olho. Ele acabara de ser destituído do Ministério da Guerra (nome que então se dava ao Ministério do Exército) pelo presidente em exercício, Carlos Luz. Como presidente da Câmara dos Deputados, Luz era o substituto legal de Café Filho, que estava doente. Se Lott rejeitasse a demissão, cometeria um ato de insubordinação. Aceitá-la, porém, abriria a porta para um rompimento da ordem constitucional: Luz estava entre os conspiradores que planejavam impedir a posse do presidente recém-eleito, Juscelino Kubitschek. No dia seguinte, Lott reassumiu seu posto no ministério. Sem a sua ação decisiva, Juscelino não teria tomado posse no início do ano seguinte. Foi o momento culminante na sua vida, o gesto que define sua personalidade, retratada na biografia O Soldado Absoluto (Record; 572 páginas; 60,90 reais), do jornalista Wagner William. Lott era essa figura atípica no Brasil de seu tempo: um militar sem vocação golpista.
Ag. Folhas |
Lott em campanha: ele corta com a espada, seu símbolo, a vassoura de Jânio Quadros |
Nascido em 1894, em Barbacena, Minas Gerais, Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott ingressou com 10 anos no Colégio Militar do Rio de Janeiro – e daí por diante dedicaria a vida ao Exército. Seus contemporâneos oficiais tinham idéias políticas reformadoras e uma concepção heróica, salvacionista do papel das Forças Armadas. Era a geração do tenentismo, movimento pontuado de lances dramáticos como a revolta dos 18 do Forte de Copacabana e a Coluna Prestes. Lott tinha idéias mais realistas sobre a carreira militar. De acordo com seu biógrafo, a ambição de Lott era ser "apenas soldado, absolutamente soldado". Na Escola Militar do Realengo – onde foi instrutor de dois futuros presidentes da ditadura, Castello Branco e Costa e Silva –, Lott manteve a neutralidade quando eclodiu a Revolução de 1930. Foi essa postura que mais tarde o colocou em posição de se opor ao golpe contra Juscelino. Empossado presidente, em 1954, Café Filho procurava, para a pasta da Guerra, um nome que não fosse ligado ao bloco getulista mas que também não soasse como uma provocação contra a memória de Getúlio Vargas, que acabara de cometer suicídio. Lott era essa figura equilibrada. Foi por seu respeito à legalidade que ele armou o contragolpe que garantiria a posse de JK. A resistência – narrada com minúcias na biografia – foi difícil: Lott chegou a ordenar que os fortes cariocas disparassem contra o navio Tamandaré, que abrigava os conspiradores.
Ag. O Globo |
Jango e Lott: "Absolutamente soldado" |
Lott tinha suas simpatias por algumas bandeiras nacionalistas defendidas pelos generais mais próximos do getulismo. Mas não era o esquerdista que seus adversários pintavam. Como ministro da Guerra – cargo em que foi mantido por Juscelino –, exerceu vigilância contra a influência comunista no Exército. No encontro que teve com Fidel Castro, em 1959, não houve simpatia de parte a parte. "A reunião ficou marcada pelas baforadas de charuto que Fidel dava na direção de Lott, que odiava qualquer tipo de fumo", conta William.
O general legalista tentou chegar à Presidência – mas pela via do voto. Foi candidato em 1960, com a espada como símbolo de campanha. Perdeu para Jânio Quadros, o candidato da vassoura. Depois da renúncia de Jânio, Lott, sempre fiel ao que a Constituição mandava, opôs-se aos militares que não desejavam Jango na Presidência. Passou alguns dias preso por causa disso. Em 1964, muitos dos golpistas que Lott frustrara em 1955 finalmente chegavam ao poder. A essa altura, ele já era um marechal da reserva, vivendo uma espécie de exílio doméstico em Teresópolis. Ainda tentou ser governador da Guanabara (Rio de Janeiro), mas sua candidatura foi impugnada. O retiro do marechal não foi tranqüilo: um neto seu, Nelson, envolveu-se na luta armada, foi preso e torturado, e a filha Edna seria assassinada pelo próprio motorista em 1971. Lott morreria em 1984, um ano antes de José Sarney assumir a Presidência, dando fim à ditadura. Foi enterrado sem as honras militares que merecia.Trecho de O Soldado Absoluto,
de Wagner William
Capítulo 1
Aquele 24 de agosto não permitiria vacilos. Vargas estava morto. O suicídio do presidente provocou um perigoso clima de luto e desespero que tomou conta do país. A todo instante, as emissoras de rádio divulgavam uma carta-testamento deixada pelo presidente. Havia -choro, ódio e inconformismo nas ruas. O vice-presidente, Café Filho, não poderia perder um só momento na tentativa de iniciar o seu Governo. Nas ruas, carros de polícia incendiados, jornais antigetulistas depredados, ameaças de morte. O que mais preocupava o vice-presidente, além dessa agitação, era a situação- militar, que poderia garantir-lhe, ou não, o poder de fato. Era vital esco-lher- imediatamente os nomes para a formação do Ministério. Adhemar de Barros,- presidente do seu partido, o PSP, o havia liberado da necessidade de qualquer- acordo político. Café nunca se entrosara com Adhemar. Sua vice-presidência resultara do "Pacto da Frente Popular", um acordo que garantiu o apoio do poderoso político paulista a Vargas, na aliança PTB-PSP. Assim que foi eleito, porém, Vargas ignorou o PSP e Adhemar rompeu com o presidente.
Café, que na noite anterior dormira - com a ajuda de sedativos - na casa do seu médico e amigo Raimundo de Brito, tentou falar com os ministros militares; não conseguiu. Pediu que fosse enviada proteção policial para o Palácio das Laranjeiras; não foi atendido. Decidiu então ir para o Palácio acompanhado por uma minúscula comitiva. Além de enfrentar os tumultos de rua, seu carro teve de passar por uma feira-livre, mas o acesso foi facilitado pelos próprios feirantes que reconheceram o novo presidente. Ainda na manhã do dia 24, conseguiu instalar-se no Palácio das Laranjeiras recepcionado pelo embaixador Vasco Leitão da Cunha, secretário do Ministério das Relações Exteriores.
Enquanto a capital ardia em protestos, Café iniciou os contatos para a formação do novo governo. Um dos primeiros convocados foi o brigadeiro Eduardo Gomes, figura histórica do tenentismo e do episódio os "Dezoito do Forte", e duas vezes candidato derrotado à presidência. Por intermédio de Prado Kelly, um dos líderes da UDN, partido de elite, bom de nome e ruim de voto, que sempre manteve uma violenta oposição a Vargas, Gomes foi convidado para o Ministério da Aeronáutica. Menos de duas horas -depois do pedido, o brigadeiro, acompanhado por Kelly, chegou ao Palácio para aceitar o cargo.
Café também buscou o apoio do PSD, um dos alicerces que sustentavam o Governo Vargas, por meio de Amaral Peixoto, presidente do partido. Casado com Alzira Vargas, filha de Getulio, Peixoto ainda estava chocado com o suicídio do sogro, e revoltado com o discurso feito dias antes por Café no Senado, no qual revelou ter levado a Getulio uma fórmula em que ambos renunciariam para que fossem realizadas novas eleições. Foi o ataque final ao agonizante governo. Peixoto ignorou os apelos do novo presidente e considerou uma ofensa o pedido. Em nome da família Vargas, recusou quaisquer homenagens fúnebres por parte do novo Governo. A revolta não ficou só na família. Os ministros de Vargas simplesmente abandonaram seus cargos sem comunicados e explicações, agravando o problema da composição do ministério.
Nas primeiras cinco horas após a morte de Vargas, o novo presidente não recebeu qualquer tipo de proteção civil ou militar. Nenhum dos ministros militares preocupou-se com ele. Café ainda era um vácuo do poder. O país não conseguia assimilar o novo momento. O Governo Café Filho começava sem reconhecimento popular nem apoio político. Poucos lembraram-se de Café durante esse período. Somente depois da uma da tarde um grupo de fuzileiros navais chegou para proteger o Palácio. Seu comandante, o tenente Álvaro Leonardo Pereira, fez a primeira continência ao novo presidente.
O Palácio das Laranjeiras não costumava ser usado por Getulio. Não havia sabonete nem papel higiênico nos banheiros. Nem sequer papel de expediente. A nomeação de Eduardo Gomes foi verbal.
Um sopro de normalidade começou a surgir quando, por volta das duas da tarde, o coronel Paulo Torres, responsável pelo Departamento Federal de Segurança Pública, chegou no Palácio e recebeu as primeiras ordens de Café: acabar com os tumultos, mas agindo com "cautela para evitar excessos contra o povo".
No fim do dia que jamais iria terminar, os generais Ângelo Mendes de Moraes e Zenóbio da Costa - que era ministro da Guerra de Getulio -, entraram na sala reservada ao presidente e o surpreenderam trocando de roupa. Depois de um constrangido pedido de desculpas, o general Zenóbio, que até então ignorara o novo presidente, solicitou sua exoneração do Ministério da Guerra (antigo nome dado ao Ministério do Exército). Café lembrou-lhe que o momento político era muito delicado para realizar uma mudança dessa importância. Zenóbio continuou firme e indicou o general Moraes para substituí-lo, mas Café insistiu garantindo que já se fixara na fórmula da sua permanência, convencendo o ministro a permanecer no -cargo. O presidente ainda solicitou que mantivesse a ordem e providenciasse proteção especial aos adversários políticos de Getulio, que vinham recebendo ameaças.
Dessa maneira, Café achava que se livrara de um grande problema. Desde a proclamação da República, o cargo de ministro da Guerra era um dos mais poderosos do Brasil, com um forte peso político. Inúmeras vezes, o país assistiu e acostumou-se a ver o Exército fazer o papel de fiador do regime. E três dessas ocasiões ainda estavam bem vivas: a Revolução de 1930, o Estado Novo de 1937 e a deposição de Vargas em 1945.
Somente no início da noite do dia 24 o general Juarez Távora, outro representante do tenentismo da década de vinte, e um dos maiores líderes das Forças Armadas também naquele momento, foi ao Palácio das Laranjeiras, que, agora sim, encontrava-se completamente tomado por políticos de vários partidos. A maioria deles tentava obter uma indicação ou um cargo. Gabinetes e salas transbordavam e os corredores começavam a lotar. Café mal conseguia se mover e era cercado por abraços e pedidos; conselhos e pedidos; elogios e pedidos. Os mais ousados chegavam a autonomear-se para os Ministérios, mas acabavam descobertos e imediatamente "demitidos". Depois de um rápido encontro com Távora, Café o nomeou para a chefia do Gabinete Militar. Durante a conversa, nada foi discutido sobre Zenóbio.
O ministério que, a princípio, o novo presidente pretendia montar com a união das várias correntes, acabou sendo quase inteiramente composto por membros da União Democrática Nacional. A exceção era Seabra Fagundes, que não tinha filiação partidária e foi nomeado para a pasta da Justiça.
Na noite do dia 24, Café dormiu novamente na casa de Raimundo de Brito. Na manhã do dia seguinte voltou ao Palácio das Laranjeiras, enquanto novos incidentes abalavam a capital federal, dessa vez durante a trasladação do corpo de Vargas para o aeroporto Santos Dumont. O embarque para São Borja, no Rio Grande do Sul, voltou a provocar tumultos que só foram controlados com a ação das tropas federais. Duas horas depois do avião ter deixado o Rio, Café instalou-se no Catete, com a intenção de sinalizar que tudo deveria voltar ao normal.
O presidente então solicitou a Távora que ouvisse o Almirantado e fizesse uma lista com indicados ao Ministério da Marinha. Em primeiro lugar entre os escolhidos estava o nome de um conhecido seu, o almirante Amorim do Valle. Café, que na sua juventude desejara ser militar, o considerou ideal para o cargo. Convite feito e aceito, Valle era o novo ministro da Marinha.
Logo surgiria um novo problema. O marechal Mascarenhas de Moraes, que graças a sua atuação à frente da FEB na Segunda Guerra tornou-se o primeiro militar a ser promovido a marechal, solicitou sua demissão da chefia do Estado-Maior das Forças Armadas. Demonstrando estar profundamente abalado com o gesto de Getulio, Mascarenhas sentia-se constrangido em permanecer no cargo. Café aceitou o argumento, mas pediu dois dias para contornar a situação.
Na tarde do dia 25, Café foi mais uma vez procurado no Catete por um afobado Zenóbio, cuja situação havia ficado insustentável depois que a -família Vargas veio a público para atacar os ministros militares do falecido presidente. Surgiam acusações pesadas de que houvera um acordo entre a oposição e os ministros militares de Getulio. Segundo esse acordo, eles permitiriam o afastamento do presidente se, em troca, fossem mantidos no poder.
Uma nuvem de suspeita levantava-se assim contra os chefes militares e também contra o próprio presidente. Durante esse encontro Zenóbio tornou a pedir demissão, dessa vez saindo da sala sem ao menos esperar resposta. Mas em um comunicado que divulgaria à imprensa, Aos homens de bem do meu país, Zenóbio afirmava que ouvira do presidente que ele e o ministro da Marinha estavam impossibilitados de ficar nos postos "porque a família Vargas acusava o presidente e os ministros da Guerra e da Marinha de terem se comprometido a exigir o afastamento do presidente Vargas, desde que no novo governo fosse garantida a permanência desses dois ministros".
Completamente transtornado, o agora ex-ministro - ainda na portaria do Catete - foi cercado por jornalistas e fez declarações fortes contra Café: "Não servirei a gente dessa espécie."Logo surgem boatos de que iria comandar um levante militar. O frágil cenário de calma política foi quase destruído por essa entrevista. Para Zenóbio, os militares que estavam com Café mostravam-se inconformados com a manutenção do ministro de Vargas na Pasta da Guerra e insistiam na sua demissão. Café chamou Eduardo Gomes, que ainda tentou uma saída pacífica:
- Se o senhor autorizar, posso procurar o general Zenóbio e tentar convencê-lo a retirar o pedido de demissão.
Café negou a autorização. Após a reunião com Gomes, pediu que Távora se encontrasse com ele na casa de Raimundo de Brito.
Mais uma grave crise política estava deflagrada no seu curtíssimo governo. Era preciso rapidez na escolha do novo ministro da Guerra, alguém capaz de superar a nítida e perigosa desunião das Forças Armadas, separadas entre os que eram a favor e contra Getulio. Por essa razão, Café exigiu de Távora um nome que não estivesse envolvivo com nenhum grupo militar:
- Preciso de um chefe de prestígio reconhecido e com tradição de liderança dentro e fora da caserna. Um general que, além de possuir todas as qualidades para o cargo, restaure a unidade e a disciplina militares e não pertença a nenhum grupo político.
Logo em seguida, Juarez voltou ao seu gabinete para passar instruções ao coronel Rodrigo Otávio. No caminho, encontrou o coronel Jurandyr de Bizarria Mamede e o tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, seus dedicados auxiliares no corpo permanente da Escola Superior de Guerra. Ambos deram a mesma sugestão: o general Fiúza de Castro, chefe do Estado-Maior do Exército. Távora explicou que Fiúza era um de seus nomes preferidos, mas não poderia indicá-lo porque ele pertencia ao grupo do general Canrobert Pereira da Costa - presidente do Clube Militar e um dos líderes de maior prestígio no Exército e na Cruzada Democrática, movimento que reunia a ala conservadora dos militares. A indicação de um seguidor de Canrobert, velho rival de Zenóbio, provocaria forte reação. Como Távora recebera uma ordem direta para não apresentar nomes de generais ligados a grupos, Fiúza estava descartado.