Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

VEJA O renascimento de Buenos Aires

Primavera portenha

A economia vai bem, a cultura
também, o turismo dispara, as
novidades proliferam: a hora
de Buenos Aires é agora


Vilma Gryzinski


Fotos Lailson Santos
RETRATOS DE BUENOS AIRES EM FLOR
Parques exuberantes, belas mulheres, moda, design, revitalização urbana e vida noturna: a cidade num momento de euforia

Beneficiada por um alinhamento astral excepcionalmente positivo, Buenos Aires vive um momento tão vibrante que todos, otimistas ou pessimistas, que já conhecem ou planejam conhecer a capital argentina deveriam aproveitar. Os primeiros para fazer um levantamento inicial e organizar muitos e repetidos retornos – a cidade está tão cheia de atrações que uma vez só não dá nem para o começo. Os segundos estão proibidos de pensar aquilo que sempre pensam – "É bom aproveitar enquanto dura". Se, como é de sua natureza, persistirem em fazê-lo, tomem nota: Buenos Aires aparentemente resiste a tudo. No auge das crises, recentes ou distantes, os portenhos nunca desistiram do sagrado hábito de salir a tomar algo, que em geral significa se vestir com capricho, reunir-se em grandes rodas de amigos, comer bem, beber idem, ouvir música, emendar vários programas e dormir apenas a intervalos irregulares. Se eles são assim nos momentos sombrios, imagine-se agora que se enfileiram exuberância econômica, florescimento cultural, revitalização urbana, empreendimentos turísticos que vão do charmoso ao grandioso e a autoconfiança recuperada. Conhecida pelos extremos da bipolaridade, alternando as profundezas da agonia com picos de êxtase, a Argentina em geral, e Buenos Aires, seu palco privilegiado, em particular, está atualmente na fase do entusiasmo galopante.

Lailson Santos
O SENHOR DO UNIVERSO
Alan Faena em seu hotel: "Enquanto aqui batiam panelas, eu batia em portas em Nova York, buscando investimentos"


O encanto de Buenos Aires sempre foi a mistura entre um passado de glórias (a Buenos Aires dos tempos de Paris do sul), figuras de dimensões mitológicas (Perón, Eva, Gardel, Borges, Diego) e um desejo efervescente de modernidade, tudo mesclado a um inigualável pendor para fazer da política um espetáculo fascinante. "A cidade é o resultado da correta e apropriada tensão entre a inovação e a tradição", teoriza Jorge Telerman, semiólogo, jornalista, ex-diplomata, empresário da noite e, no momento, prefeito da capital em virtude justamente de uma dessas reviravoltas (o titular foi afastado, num processo de impeachment que deve durar alguns meses). A tradição – mais os cafés e confiterías novecentistas, os teatros art nouveau, os palacetes neoclássicos – continua lá e merece ser revisitada, sempre. Em alguns períodos, porém, em especial para visitantes freqüentes, a sensação de déjà vu tornou-se algo incômoda. Isso acabou. Não mais as lojas que pareciam ter os mesmos artigos de couro desde o governo Juan Carlos Onganía; não mais os restaurantes que, não obstante a celebrada qualidade da carne, tinham visto sua última inovação culinária mais ou menos na mesma época; não mais os mesmos hotéis desgastados.



Fotos Lailson Santos
SOB O OLHAR DOS UNICÓRNIOS – Os dois restaurantes do hotel: sete projetos de Philippe Starck até obter o impacto desejado

As novidades pululam numa cidade em que, informa o prefeito interino, "o turismo cresceu pelo segundo ano consecutivo quase 30% acima da média mundial". Em Palermo, um antigo barrio de casitas pobres, as tais casinhas transformam-se aceleradamente numa interminável coleção de lojas, bares e restaurantes, todos modernos, antenados, vibrantes de energia criativa. É possível passar uma tarde inteira de loja em loja e não chegar a conhecer todas – como fecham lá pelas 10 da noite, dá para emendar na miríade de bares que fervem noite afora. O bairro se divide em Palermo Viejo e, com modéstia característica, Palermo Soho e Palermo Hollywood (pronúncia aproximada: "Roliú"). A onda entre turistas jovens é se hospedar em algum hotelzinho bacana – Buenos Aires cultiva, oficial e oficiosamente, uma paixão por design – por lá mesmo e fazer o circuito completo. O atestado de juventude, embora recomendável, não é obrigatório. Em qualquer lugar a que se vá, até nos mais alternativos, sempre se encontrarão buenairenses mais, digamos, curtidos. Fazem parte da paisagem da cidade as mesas da terceira idade repletas de senhores e senhoras elegantes que, num desafio a todos os cânones da medicina preventiva, consomem quantidades titânicas de carne e detonam no vinho, quando não arrematam tudo com um cigarro.


Lailson Santos
A LIVRARIA-ESPETÁCULO
Oitenta mil pessoas passam por mês na Ateneo

O retrato mais preciso das transformações em curso na cidade é o Hotel Faena, parte de um empreendimento espantosamente grandioso em Puerto Madero, a antiga área portuária por onde saíam os frutos dos campos mais ricos do mundo, como diziam na época. Entra-se no hotel, num antigo armazém de tijolinhos ingleses, por um corredor de 75 metros. Os viciados em design correm o risco de se perder lá para sempre, tal a quantidade de ambientes e detalhes. Aqui, um salão em que móveis de estilo império se misturam a curiosidades de épocas variadas, numa mescla que somente o gênio do designer francês Philippe Starck poderia salvar da overdose. Abre-se outra porta e lá está o restaurante todo branco, com catorze cabeças de unicórnio mirando oniricamente os comensais. Mais uma, e um grupo de tango numa sala vermelha como a paixão atormentada cantada nas músicas faz o que os grupos de tango fazem – sexo e poesia em forma de dança. Por trás de tudo está o empresário Alan Faena, que, com modéstia característica, batizou o conjunto de Hotel Faena Universe. O senhor desse universo tem 40 anos, músculos bem torneados e só se veste de branco, com chapéu de caubói e anelões de turquesa. Usa a linguagem dos visionários ("redefinir a cultura", "recuperar a antiga glória", "proposta para o mundo"), mas tem realizações bem concretas para apresentar. "Quando todo mundo estava batendo panelas aqui, eu estava batendo em portas de Nova York, em busca de investidores", jacta-se. Faena rejeitou sete projetos de Philippe Starck até chegar ao que queria para o hotel. Tem outro empreendimento residencial-comercial-cultural saindo do forno e mais um, assinado por Norman Foster, o grande arquiteto inglês.

Lailson Santos
PREFEITO DA NOITE
Telerman, o interino, define o espírito da cidade: "Entre a inovação e a tradição"


A primavera portenha está repleta de surpresas de alto impacto como o Faena e outras mais comezinhas. Um exemplo: quem estava acostumado aos plátanos outonais dá de cara com uma cidade praticamente coberta de jacarandás da variedade conhecida como mimoso, numa esplêndida explosão violácea (surpresa maior ainda: a espécie, tão presente em cidades brasileiras, é nativa do norte da Argentina). Outro: primavera pode significar temperaturas de 35, 36 graus, magnificados pela umidade de lascar, uma conjunção que põe os aparelhos de ar condicionado em estado de transe e redunda em apagões – estamos, afinal, na Paris do sul; quem quer previsibilidade deve ir a Paris propriamente dita. Lá os subúrbios estão pegando fogo? Pois só pode ser inveja. Em Buenos Aires, a coisa pode pegar fogo a qualquer hora, em qualquer lugar. Os canais de notícias, que proliferam, costumam dar o cronograma diário das manifestações. Há piqueteiros, como são chamados, contra e – ah, Argentina – a favor do governo. Na esteira da normalidade, também ressurgem os movimentos grevistas. Na semana passada, funcionários das Aerolineas Argentinas (aumento reivindicado: 40%) tumultuaram não apenas a própria empresa como todo o trânsito em torno dos aeroportos. Passageiros tiveram de chegar ou sair a pé, o que deixa uma imagem nada positiva da cidade. Para contrabalançá-la, talvez o melhor antídoto seja o lugar que, como nenhum outro, sintetiza a dicotomia tradição-modernidade que é o charme de Buenos Aires: a Ateneo da Avenida Santa Fé, um cinema-teatro do começo do século passado, com cúpula pintada e balcões iluminados, transformado numa das mais belas livrarias do mundo. Por lá passam mais de 80.000 pessoas por mês, celebrando uma encantadora virtude argentina, o amor aos livros. Deepak Chopra, o guru indiano da auto-ajuda, passou por ela para uma sessão de autógrafos e não resistiu ao clichê: "É como estar em Paris". Só isso? "Paris com tango", emendou. Os clichês, como se sabe, têm uma ponta de verdade.

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