Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

VEJA Argentina Reforma ministerial de Kirchner provoca calafrios

Kirchner e suas muchachas

Dispensado o ministro-âncora, o
presidente argentino monta um
governo de fiéis amazonas peronistas


Vilma Gryzinski, de Buenos Aires


AFP
FELISA, A NOVA MINISTRA DA ECONOMIA
"Sou um soldado kirchnerista"


Pierre-Philippe Marcou/AFP
RAINHA CRISTINA, A MULHER
"O peronismo é uma construção histórica do povo argentino"


Parecia bom demais para ser verdade: a economia crescendo a invejáveis 9%, o desemprego caindo, o calote da dívida – o maior da história – espantosamente assimilado, a conjuntura internacional benfazeja, um sopro de otimismo varrendo o país depois de tantas e tão hediondas crises. Foi então que o presidente argentino Néstor Kirchner, que pouco ou nada teve a ver tanto com os horrores quanto com as benesses acima mencionadas, resolveu emplacar para valer as próprias idéias. A degola de Roberto Lavagna, o homem que garantiu o mais sacrossanto valor de países convulsivos como a Argentina – a estabilidade –, já era esperada depois das eleições legislativas em que Kirchner ganhou uma espécie de reconfirmação popular a seu mandato (é complicado resumir; registre-se apenas que ele chegou à Presidência com somente 22% dos votos). Mas a maneira abrupta como a reforma ministerial aconteceu e, principalmente, a turma que o presidente promoveu provocaram calafrios desde a Patagônia até o Alasca. Kirchner agora quer emplacar a própria política econômica, no quadro de um programa de governo que flerta com o perigo: intervencionista, neodesenvolvimentista, antiprivatista e, pasmem, peronista – o fantasma imorrível que a Argentina, em pleno século XXI, não consegue colocar na prateleira da história. Para fazê-lo, colocou em postos-chave mulheres que se encaixam no perfil. É mais ou menos como se tivesse feito um governo cheio de Dilmas Rousseff, todas doidinhas para abrir os cofres públicos.



Juan Solorzano/AFP
NILDA GARRÉ, A AMIGA DE CHÁVEZ
Ex-militante de esquerda vai dar ordens aos generais

As muchachas de Kirchner, com seu DNA antiausteridade e idéias atreladas ao tumultuado passado argentino, são de abalar o mercado. A nova ministra da Economia, Felisa Miceli, apesar do estilo discreto num país de personalidades femininas vulcânicas, tem um histórico de declarações auto-explicativas. "Falar em privatizações me faz mal", disse em resposta às pressões para reformar o Banco de la Nación Argentina – o equivalente ao Banco do Brasil –, sob seu comando até ser deslocada para o lugar de Lavagna. Professora de economia, 52 anos, especialista em projetos de investimentos e ex-sócia de Lavagna numa consultoria, é, claro, peronista militante. Considerada uma ministra de transição ou, mais provavelmente, apenas uma figura sem projeção política própria – veículo ideal para o presidente fazer o que quer –, ela já se definiu, significativamente, da seguinte forma: "Sou um soldado kirchnerista".

A outra mulher trazida por Kirchner para o ministério tem um perfil mais agressivo. Nilda Garré, 60 anos, militante histórica do peronismo, foi transferida diretamente da embaixada em Caracas, onde dançou um paso doble agarradinho com Hugo Chávez, para o Ministério da Defesa. Colocar uma mulher de esquerda para mandar nos generais de um país que teve ditadura militar não é necessariamente uma provocação – no Chile, a socialista Michelle Bachelet não só se saiu muito bem como caminha, provavelmente, para ser eleita presidente. Socialistas chilenos, no entanto, com sua adesão a um projeto nacional racional e sem sustos, vivem quase que num universo paralelo em comparação a peronistas argentinos. Flashback ilustrativo: Nilda Garré estava no avião que trouxe de volta do exílio, em 1973, o mito-ainda-encarnado Juan Domingo Perón. Formava na linha de frente dos Montoneros, a esquerda radicalizada do peronismo. Exemplo recente: ajudou o companheiro Chávez a organizar o show anti-Alca que transformou a Cúpula das Américas, realizada no mês passado em Mar del Plata, num retrato da esquizofrenia assumida do governo Kirchner – um pedaço recebendo George W. Bush; outro sentando-lhe pancadas, com a conseqüência previsível de que o establishment americano toma cada vez mais ojeriza à cúpula argentina. Quando Chávez ofendeu Vicente Fox (chamando-o de "cria do império"), Garré tomou partido do primeiro e disse que o presidente mexicano havia usado de um "tom inadequado".

Ali Burafi/AFP
ALICIA, IRMÃ E CLONE
Na turma das Meninas Superpoderosas


A terceira muchacha de Kirchner é a mais controvertida, a mais apaixonante, a mais bonita. E, acima de tudo, indemissível: sua mulher, Cristina Fernández (em vários países de raízes espanholas, as esposas continuam conhecidas pelo sobrenome de solteira). Ex-senadora, ex-deputada, agora senadora de novo – foi à posse do novo Congresso, na terça-feira passada, com um tubinho branco agarrado e o comentadíssimo relógio Rolex de ouro –, a rainha Cristina, como adora ser chamada (os inimigos preferem la bruja), é uma formidável parceira política do marido. Os dois conheceram-se na faculdade de direito e na militância peronista, claro. Sobreviveram à longa noite do terror que baixou sobre a Argentina com o regime militar com apenas passagens rápidas pela cadeia, mudaram-se para a província natal dele (a gelada Santa Cruz, daí o apelido de pingüim que abarca o presidente e sua trupe), ganharam dinheiro com sua banca de advocacia e fizeram juntos um projeto político bem-sucedido. Prefeitura, governo provincial e, num salto fulminante, Presidência para ele. Carreira legislativa para ela. Antes da súbita projeção nacional de Kirchner, Cristina era mais conhecida do que o marido. Também é considerada melhor oradora, mais articulada e mais midiática. Como uma mulher contemporânea, brilhante, bem informadíssima, pode ter uma visão acrítica do peronismo, essa explosão populista da metade do século passado, em circunstâncias históricas únicas, com um caudilho venerado como semideus, juntamente com sua Evita – que Cristina assume cultuar? "Eu diria que é uma construção histórica do povo argentino que tem a ver com a identidade, com o popular, que é talvez uma categoria incompreensível aqui, na Europa, ou nos Estados Unidos", desconversou ela numa entrevista ao jornal espanhol El Pais.

Do círculo de amazonas montado na Casa Rosada faz parte ainda a irmã e clone do presidente, Alicia Kirchner, que está saindo do governo – mas não do poder – para assumir sua cadeira de senadora. Como ministra do Desenvolvimento Social, era a encarregada de distribuir as benesses que azeitam o caminho para o kirchnerismo assumir o controle da máquina peronista e seduzir os beneficiados pelos programas sociais. Antes da rearrumação da semana passada, Alicia, Cristina e Felisa Miceli já eram chamadas, jocosamente, de As Meninas Superpoderosas. As mulheres da era K – tudo relacionado ao presidente agora leva sua inicial – são importantes pela trajetória própria e pelo que revelam de Kirchner, um personagem intrigante, que pode ser encantador e ao mesmo tempo mercurial, dado a discursos destemperados cujo teor contrasta com o tom brando com que são emitidos. Mesmo sem Lavagna, com sua aura de arquiteto da recuperação econômica e garantidor da estabilidade, ninguém espera loucuras de Kirchner, em especial num momento em que o país inteiro engole em seco ante a escalada gradual da inflação – o ano deve fechar em 12%, o que é sinal de perigo em qualquer lugar, e muito mais na Argentina, devastada por uma hiperinflação alucinante numa das muitas crises de sua história recente.

A história ensina, porém, que tudo, especialmente o mais inesperado, o mais absurdo, pode acontecer na Argentina. Ninguém esperava que Carlos Menem, o "turco" (de origem síria) de costeletas ridículas e da mais tradicional linhagem caudilhesca do peronismo, fosse abrir a economia e endossar, até o fim, a ilusão da paridade. É inimaginável que Kirchner, de conservadoras raízes européias (pai suíço-alemão, mãe chilena de família croata), teoricamente da facção mais ilustrada do peronismo, vá pôr em risco as conquistas atuais. A palavra milagre é empregada com freqüência para caracterizar saltos econômicos, mas é difícil imaginar uso mais adequado do que no caso atual da Argentina. Há apenas quatro anos, o país parecia ter sido atingido por uma bomba de nêutrons ao contrário: as pessoas continuavam vivas, mas a economia derreteu-se. A paridade soçobrou, o dinheiro foi confiscado, multidões enlouquecidas tomaram as ruas açoitando tudo e todos. Nada menos que cinco presidentes se sucederam. Que Deus ou aquele a quem muitos argentinos consideram seu representante na terra – Diego Maradona – jamais permitam que algo nem sequer parecido aconteça. Aliás, pensando bem, é melhor não envolver Maradona nessa história.

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