Primeira Leitura
Todos queremos uma agenda positiva para o Brasil, é claro. Eis uma daquelas questões que, costumo dizer, não precisam ser proclamadas porque são de ímpar obviedade. Ou será que alguém vai sair a campo para dizer que pretende tornar "este país" — como gosta de dizer o Apedeuta — ainda pior? Agenda positiva é igual a honestidade, bons princípios e bodum quando não se toma banho: todo mundo tem. Até Ingrid Bergman cheiraria mal em Casablanca se não fizesse a devida higiene. Era o banho suposto que a tornava empírea. Imaginemo-la, recendendo a suor, dizendo para Ricky em Paris: "São os alemães chegando ou é o barulho do meu coração?". Há coisas que são tão óbvias como necessárias.
Um candidato ter propostas é óbvio e necessário. Ou qual seria seu discurso? "Brasileiros, estou aqui para dizer que não tenho a menor noção do que pretendo fazer, mas sei que o governo não é bom, e temos de mudar. Eu sou mais bacana do que este que está aí." Essa é a fala que venceu em 2002. Com alguma severidade, reproduz a essência da pregação petista. Só colou porque o candidato era quem era: estava posto, pela imprensa, acima do bem e do mal. Havia um grande frenesi por um governo operário (rá, rá, rá). E, hoje, é justamente o empresário José Alencar que reclama da política macroeconômica. A casa-grande já não agüenta mais ser chicoteada pela senzala, que teve a sua "credibilidade" seqüestrada pelo financismo. Bem feito para todos! Mas já me desviei. Retomo o fio.
Não entendo, e não entendo mesmo!, o que querem dizer os governadores Geraldo Alckmin (SP) e Aécio Neves (MG) quando acenam com uma espécie de pax com o petismo, de sorte que, parece, a disputa teria de abandonar uma linguagem propriamente política para se tornar friamente administrativa. Como se estivéssemos todos dedicados a saber como é que se vai reorganizar a burocracia do Estado. Ora, a disputa será um pouco mais do que isso. E será justamente porque o PT não abre mão — e, nesse particular, está certo — de fazer política.
Aliás, é o que o partido mais faz. Contra Alckmin, inclusive: com greve de professores, agitação, via ONGs e assemelhados, na Febem e investidas cotidianas na Assembléia, numa verdadeira indústria de pedidos de CPIs. Em Minas, o entendimento suprapartidário parece mais pacífico do que no resto do Brasil. Diz Aécio que a disputa não pode implicar uma nacionalização da questão regional — entenda-se: São Paulo. É verdade. Mas também não se deve reivindicar que seja uma mineirização da nação, que vive realidade bem distinta.
A sucessão de Lula impõe, sim, o debate sobre modelos de desenvolvimento e de inserção do Brasil na economia globalizada. Temos, por exemplo, uma política externa em curso, que vai da articulação no Mercosul às disputas nos fóruns multilaterais, passando pelo envio, coisa de um prosaísmo trágico, de tropas brasileiras para o Haiti. O que significa ser apenas propositivo? Tal discurso terceiro-mundista não vai ser desmontado, criticado, evidenciado, denunciado se for o caso? Negar-se a fazê-lo corresponde a despolitizar a política.
Temos uma política econômica em curso. Não está em debate se o país deve ou não pagar as suas dívidas, se o calote é ou não admissível, se é o caso de olhar para o caixa do Tesouro como se ele fosse um buraco sem fundo. Essa era a plataforma do antigo PT, aquele não-reformado. Mas é preciso que se avaliem as respostas dadas para o quarteto inflação-juros-superávit-câmbio. Ou vamos fingir que vivemos no melhor dos mundos, despolitizando, de novo, a política por meio da despolitização também da economia? Será que tudo deve ser um jogo de cartas marcadas entre grão-senhores que celebram um pacto de não-agressão? Estariam, nesse caso, unidos numa "supraclasse" em oposição ao conjunto dos brasileiros, que devem apenas amassar o nariz contra a vitrine, assistindo a tudo, mas do lado de fora?
A democracia brasileira tem sido severamente agredida e testada nestes três anos de governo Lula. Assim foi com a tentativa de criar um Estado paralelo, nas sombras, ao qual caberia, de fato, reger os destinos do país. Foi o que seu viu com a eliminação de fronteiras entre partido, governo, Estado e sindicatos, submetendo-se a agenda da sociedade civil aos interesses de um projeto de poder. Não se vai tocar nesse assunto? Os eleitores que resistiram ao PT e ao petismo — sejam aqueles 33 milhões que votaram em Serra em 2002, sejam os que foram se dando conta da aberração de 2003 para cá — serão convidados a operar uma simples troca de guarda, de gerência, de síndico?
A prudência sempre será uma boa conselheira. Mas é preciso não confundir as coisas. Ou se estará, na prática, tirando do cidadão comum o direito de se politizar e de fazer, ele também, política. Duda Mendonça tinha a máxima de que não se ganha eleição falando mal dos outros, mas exaltando as próprias virtudes. Serviu a Lula? Serviu. Serviu a Maluf antes? Serviu. Tendo servido a ambos, parece que o Brasil é que foi, então, desservido. Duda estava, ao que parece, ensinando apenas um jeito de dar um truque para ganhar. Os políticos que ele elegeu com o seu modelo estão muito longe de ter honrado a democracia brasileira e as instituições.
Cada um na sua, é claro. A minha é a seguinte: quem compactuar com os métodos petistas de governar se declara, até onde entendo, por contaminação voluntária, inimigo da democracia que defendo: a representativa. Radicalismo? Não meu! O PT ainda paga, que eu saiba, o advogado de Delúbio Soares — "o nosso (deles!) Delúbio", como disse Lula. Onde estão os extremistas?
É próprio de um político fazer propostas (de preferência, distinguindo-as das promessas), como é próprio de Ilse (a Ingrid, em Casablanca) não exalar bodum. Coisas necessárias e óbvias. Mas mesmo a moça, tão empírea, sacou uma arma contra o amante para conseguir uma autorização de viagem para o marido; decidiu largar esse marido para ficar com o amante; acabou renunciando a este para seguir aquele porque assim exigiam as circunstâncias. Para certos extremos, até os amorosos, como se vê, não pode haver moderação.
Ou a tal moderação deixa de ser uma virtude e passa a ser um vício.
Publicado em 28 de novembro de 2005.
Um candidato ter propostas é óbvio e necessário. Ou qual seria seu discurso? "Brasileiros, estou aqui para dizer que não tenho a menor noção do que pretendo fazer, mas sei que o governo não é bom, e temos de mudar. Eu sou mais bacana do que este que está aí." Essa é a fala que venceu em 2002. Com alguma severidade, reproduz a essência da pregação petista. Só colou porque o candidato era quem era: estava posto, pela imprensa, acima do bem e do mal. Havia um grande frenesi por um governo operário (rá, rá, rá). E, hoje, é justamente o empresário José Alencar que reclama da política macroeconômica. A casa-grande já não agüenta mais ser chicoteada pela senzala, que teve a sua "credibilidade" seqüestrada pelo financismo. Bem feito para todos! Mas já me desviei. Retomo o fio.
Não entendo, e não entendo mesmo!, o que querem dizer os governadores Geraldo Alckmin (SP) e Aécio Neves (MG) quando acenam com uma espécie de pax com o petismo, de sorte que, parece, a disputa teria de abandonar uma linguagem propriamente política para se tornar friamente administrativa. Como se estivéssemos todos dedicados a saber como é que se vai reorganizar a burocracia do Estado. Ora, a disputa será um pouco mais do que isso. E será justamente porque o PT não abre mão — e, nesse particular, está certo — de fazer política.
Aliás, é o que o partido mais faz. Contra Alckmin, inclusive: com greve de professores, agitação, via ONGs e assemelhados, na Febem e investidas cotidianas na Assembléia, numa verdadeira indústria de pedidos de CPIs. Em Minas, o entendimento suprapartidário parece mais pacífico do que no resto do Brasil. Diz Aécio que a disputa não pode implicar uma nacionalização da questão regional — entenda-se: São Paulo. É verdade. Mas também não se deve reivindicar que seja uma mineirização da nação, que vive realidade bem distinta.
A sucessão de Lula impõe, sim, o debate sobre modelos de desenvolvimento e de inserção do Brasil na economia globalizada. Temos, por exemplo, uma política externa em curso, que vai da articulação no Mercosul às disputas nos fóruns multilaterais, passando pelo envio, coisa de um prosaísmo trágico, de tropas brasileiras para o Haiti. O que significa ser apenas propositivo? Tal discurso terceiro-mundista não vai ser desmontado, criticado, evidenciado, denunciado se for o caso? Negar-se a fazê-lo corresponde a despolitizar a política.
Temos uma política econômica em curso. Não está em debate se o país deve ou não pagar as suas dívidas, se o calote é ou não admissível, se é o caso de olhar para o caixa do Tesouro como se ele fosse um buraco sem fundo. Essa era a plataforma do antigo PT, aquele não-reformado. Mas é preciso que se avaliem as respostas dadas para o quarteto inflação-juros-superávit-câmbio. Ou vamos fingir que vivemos no melhor dos mundos, despolitizando, de novo, a política por meio da despolitização também da economia? Será que tudo deve ser um jogo de cartas marcadas entre grão-senhores que celebram um pacto de não-agressão? Estariam, nesse caso, unidos numa "supraclasse" em oposição ao conjunto dos brasileiros, que devem apenas amassar o nariz contra a vitrine, assistindo a tudo, mas do lado de fora?
A democracia brasileira tem sido severamente agredida e testada nestes três anos de governo Lula. Assim foi com a tentativa de criar um Estado paralelo, nas sombras, ao qual caberia, de fato, reger os destinos do país. Foi o que seu viu com a eliminação de fronteiras entre partido, governo, Estado e sindicatos, submetendo-se a agenda da sociedade civil aos interesses de um projeto de poder. Não se vai tocar nesse assunto? Os eleitores que resistiram ao PT e ao petismo — sejam aqueles 33 milhões que votaram em Serra em 2002, sejam os que foram se dando conta da aberração de 2003 para cá — serão convidados a operar uma simples troca de guarda, de gerência, de síndico?
A prudência sempre será uma boa conselheira. Mas é preciso não confundir as coisas. Ou se estará, na prática, tirando do cidadão comum o direito de se politizar e de fazer, ele também, política. Duda Mendonça tinha a máxima de que não se ganha eleição falando mal dos outros, mas exaltando as próprias virtudes. Serviu a Lula? Serviu. Serviu a Maluf antes? Serviu. Tendo servido a ambos, parece que o Brasil é que foi, então, desservido. Duda estava, ao que parece, ensinando apenas um jeito de dar um truque para ganhar. Os políticos que ele elegeu com o seu modelo estão muito longe de ter honrado a democracia brasileira e as instituições.
Cada um na sua, é claro. A minha é a seguinte: quem compactuar com os métodos petistas de governar se declara, até onde entendo, por contaminação voluntária, inimigo da democracia que defendo: a representativa. Radicalismo? Não meu! O PT ainda paga, que eu saiba, o advogado de Delúbio Soares — "o nosso (deles!) Delúbio", como disse Lula. Onde estão os extremistas?
É próprio de um político fazer propostas (de preferência, distinguindo-as das promessas), como é próprio de Ilse (a Ingrid, em Casablanca) não exalar bodum. Coisas necessárias e óbvias. Mas mesmo a moça, tão empírea, sacou uma arma contra o amante para conseguir uma autorização de viagem para o marido; decidiu largar esse marido para ficar com o amante; acabou renunciando a este para seguir aquele porque assim exigiam as circunstâncias. Para certos extremos, até os amorosos, como se vê, não pode haver moderação.
Ou a tal moderação deixa de ser uma virtude e passa a ser um vício.
Publicado em 28 de novembro de 2005.