Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

O Exército está errado; o governo, mais errado ainda Por Rui Nogueira

PRIMEIRA LEITURA



Tratei do assunto na edição de outubro passado da revista Primeira Leitura (nº 44), mas a barbárie carioca, que teve a linha de ônibus 350 (Passeio-Irajá) como palco trágico, na quarta-feira, repõe o debate na ordem do dia. E a pergunta, a título de introdução, é esta: o que estamos nós a fazer no Haiti, com cerca de 2 mil soldados a policiar aquele país, enquanto os bandidos da terra fazem gato e sapato do Estado e tacam fogo no cidadão brasileiro com a mais absoluta, brutal e assassina sem-cerimônia? Mais: onde está o Estado que se permite ser superado pelos bandidos de outra facção e assiste, impávido, ao ritual de justiça feita com as próprias mãos, em uma operação macabra de marketing?

Acordem, senhores do governo, que foram eleitos para ser os braços do Estado a serviço do cidadão. O Estado está sendo comido, e já não é pelas beiradas, porque os governos não têm políticas públicas que definam de onde partimos e aonde queremos chegar. A praga das soluções de ocasião, que nem esse estúpido oportunismo de enviar o Exército para o Haiti, está destruindo a capacidade de diferenciarmos o que é essencial e o que é acessório.

Essencial, hoje, indiscutivelmente, é tomarmos o terreno público perdido para os bandidos. É uma questão de disputa territorial, especialidade constitucional das Forças Armadas e, no caso, atribuição clara do nosso Exército. É por isso que digo que o Exército está errado, e o governo erra mais ainda ao aceitar uma argumentação que as Forças Armadas impuseram à sociedade.

Não é a repulsa das Forças Armadas em exercer a função policial que está errada. O equívoco reside na extensão que o argumento tomou, a ponto de jogar o Estado na inércia. Além do mais, gerou-se uma inércia contraditória.

Haiti: missão policial
O Exército que se nega a policiar o Brasil é o mesmo que está no Haiti em uma missão categoricamente policial. A missão militar brasileira já enfrentou uma onda de seqüestros, atacou e foi atacada por gangues armadas, monta barreiras de controle tipicamente policial, faz até duas dezenas de batidas diárias, revista carros e a população. Os generais brasileiros que comandam a missão já se orgulharam, em mais de uma entrevista, de controlar "razoavelmente" o favelão de Bel Air, em Porto Príncipe, a capital haitiana. E nossos soldados fazem tudo isso, quase sempre, em operações conjuntas com uma das mais corruptas e violentas polícias do mundo, a Polícia Nacional do Haiti (PNH).

Disse que a questão brasileira é de controle de território, especialidade das Forças Armadas, mas acrescento que essa seria a motivação primeira para convocar o Exército. Hoje, depois do caso da linha 350, a título simbólico, pois isso vem acontecendo com muito mais freqüência do que chega à mídia, produziu-se um agravante que justifica ainda mais a presença do Exército em certos morros, favelas e bairros: além dos territórios fora do alcance do Estado, que precisam ser reconquistados, os bandidos também se locomovem à vontade. Eles matam e se matam a partir de uma inédita liberdade de ação, a ponto de bandido vingar bandido e ainda fazer propaganda da "rapidez" como a "justiça" foi feita.

Duas dezenas de bandidos cercam um ônibus, de uma linha qualquer do Rio, regam os passageiros com gasolina, acendem um palito de fósforo e transformam o veículo em uma tocha que mata meia dúzia de pessoas e deixa 14 delas gravemente feridas. Uma ação em represália à morte de um bandido. O comando da polícia, julgando que está apropriando a linguagem aos tempos de Bin Laden, chama a ação de "operação terrorista" – como se a população ficasse satisfeita e segura com o tom eloqüentemente dramático da declaração.

Outro comando, o Vermelho (CV), captura quatro dos bandidos que incendiaram e mataram os passageiros do ônibus, metralha-os e "entrega" os corpos à sociedade dentro de um carro Meriva. O cartaz anexo à encomenda que ninguém pediu, mas muitos anseiam, dizia: "Taí os quatro. Nós não aceitamos terrorismo".

Duas funestas opções
Traduzindo: o nosso Exército policia as ruas de Porto Príncipe, no Haiti, e o Comando Vermelho manda que a sociedade brasileira escolha entre duas opções funestas que ele mesmo estabeleceu: ou aceita os "bandidos terroristas" ou fica com o que seria o mal menor, o bandido que se admite bandido, mas que não aceita o terrorismo. Estamos mesmo diante de um nebuloso golpe de marketing, pois os assassinos da linha 350 não são terroristas e os bandidos do CV são apenas o que são: bandidos. O terrorismo, expressão violenta de uma ideologia criminosa, não decorre da ausência do Estado, mas o banditismo é decorrência direta disso.

A polícia tem de continuar a ser a tutora da segurança pública cotidiana do cidadão. De preferência, claro, libertada da ineficiência e corporativismo contumazes. Mas é com o Exército que os bandidos devem se confrontar na disputa pelo território que eles tomaram do Estado e do cidadão, que é quem está sitiado. Os bandidos devem, de preferência, se defrontar com o Exército brasileiro que treinou no Haiti – basta chamá-lo de volta, exercendo o governo Lula, diante da ONU, a soberania de que ele tanto gosta de falar. O Haiti deve ser um problema dos haitianos e de quem está mais livre de problemas cotidianos e economicamente mais capacitado para ajudar aquele povo. Nós não!

O Exército desenvolveu a teoria da repulsa à tarefa policial quando o governo norte-americano tentou impingir às Forças Armadas latino-americanas como tarefa primordial o combate ao narcotráfico. A condução enviesada da discussão pelos EUA criou mais problemas do que soluções.

É claro que as Forças Armadas não devem caçar traficantes nas ruas ou morros das grandes cidades, tanto quanto é pueril achar que em um país com a extensão do Brasil, com o tamanho das fronteiras terrestre e marítima, seria melhor gastar o dinheiro no social, em vez de empregá-lo no Sistema de Defesa Nacional. A ingenuidade política sempre cobra um preço alto. Mas, quando o tráfico envolve a transformação das nossas fronteiras em porta franca de entrada e saída do que quer que seja, a começar pelas drogas, isso tem, indubitavelmente, a ver com as Forças Armadas.

Tanto quanto tem a ver com as Forças Armadas o fato de que porções do território urbano do país estejam fechadas à presença do Estado. E já são tão significativos a quantidade e o tamanho desses territórios, que agora os bandidos se locomovem entre eles fácil e acintosamente. O Exército não é polícia, mas só ele tem o treino e os instrumentos para expulsar bandidos de territórios e entregá-los ao sistema policial e judiciário do país. Bem como só ele pode cortar o espaço de livre locomoção dos bandidos.

Não são casos de polícia
O Exército não pode achar que é apenas um caso de polícia o que aconteceu na linha 350 (Passeio-Irajá), o que acontece todos os dias nos morros cariocas, quando os carros das empresas concessionárias de serviços públicos pedem licença aos líderes do tráfico para entrar nas favelas. Também não vai ser o receituário estritamente policial que dará conta da performance do novo líder do tráfico da Rocinha, um tal de "Joca", que mandou avisar que não quer roubos, estupros e tiros a esmo na capitania dele, que vai do São Conrado Fashion Mall, um shopping da classe alta-alta a poucos metros da  entrada da Barra da Tijuca, até o bairro do Humaitá. É claro que o "Joca" não quer violência de nenhum tipo, contanto que ele pratique a violência nos limites do que ele considera aceitável e o Estado nunca esteja por perto para contestar as definições do bandido.

Desgraçada está a população que mede e pesa o pragmatismo do bandido e a ineficiência e ausência do Estado e, igual e pragmaticamente, se sente protegida pela oferta do "Joca" da Rocinha.

O Exército não pode fugir à tarefa de tomar o território do "Joca", uma tarefa constitucional, e se esconder por trás de uma definição tão extensiva do que sejam obrigações policiais que acabe virando espectador de cenas que começaram dramáticas e estão se repetindo de maneira trágica. Os governos, por preguiça e incompetência para liderar a formulação e execução de políticas públicas, acomodaram-se e acataram a definição equivocada do que seja a tarefa antipolicial das Forças Armadas.

Governar é optar. O único que sabe o que quer é o "Joca" da Rocinha, que ditou o melhor ambiente para seus negócios e até delimitou o território de mando.

[ruinogueira@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 2 de dezembro de 2005.


Arquivo do blog