F0lha on line 02/12/2005
Dirceu não soube exercer o poder
José Dirceu foi cassado porque não soube exercer o poder. Soube conquistá-lo, mas cometeu grandes erros ao dispor dele. O primeiro foi acumular tarefas em excesso. Numa tara por poder que o engoliu, ele foi coordenador administrativo do governo, articulador político, crítico da política econômica, presidente de fato do PT e se esforçou em alguns momentos para parecer co-presidente da República.Na quinta-feira (1º/12), uma jornalista reagiu com surpresa ao final da entrevista coletiva em que o ex-deputado federal mostrou inteligência, altivez, humildade, bom humor e arrogância contida. "Por que ele não se comportou assim desde o primeiro dia?", ela indagou retoricamente.
Desde Golbery do Couto e Silva (governo Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979), nunca o Brasil teve um chefe da Casa Civil tão poderoso. A cadeira de Dirceu tinha botões que, se apertados, explodiriam o assento junto com ele. No final de maio, ele apertou esse botão. Fez chegar a Roberto Jefferson, então presidente do PTB, que tinha informações do serviço secreto do governo do seu envolvimento com corrupção. Deu o recado de que poderia acabar com Jefferson e não atendeu telefonemas desesperados do antigo aliado.
Puro blefe. Dirceu não tinha tais informações. Mas Jefferson, acuado, deu a entrevista que selou o destino do então chefe da Casa Civil.
No PT e no governo, não foram poucas as vezes em que contava vantagem excessiva ao fazer comentários de natureza política e pessoal. Prosa, era sempre o "rei da cocada", expressão que usou quando interrompeu um momento de arrogância para se mostrar modesto na entrevista em que falou da cassação que acontecera à meia-noite e um minuto daquela quinta.
A imagem de poderoso chefão se transformou num bumerangue que retornou direto para a sua testa. "Como era possível que ele não soubesse do mensalão se era quem era e quem dizia ser?", perguntavam os deputados que votaram por sua cassação.
Como escreveu Eliane Cantanhêde na edição impressa da Folha, fez-se um silêncio constrangedor no plenário da Câmara quando se atingiu o número suficiente de votos para cassar um político com uma biografia para lá de respeitável. Apenas um fascista como Jair Bolsonaro (PP-RJ) fez o sinal da vitória. A oposição não comemorou. Os poucos governistas que ali estavam se calaram. A atmosfera era um misto de melancolia e incredulidade.
Triste para quem fez o melhor discurso na posse do governo petista, em 1º de janeiro de 2003. Naquele dia, ele rendeu tributos aos que lutaram contra a ditadura militar de 1964. Deixou claro que um governo de centro-esquerda estava dando a mão ao grande capital para não incendiar o país. Mostrou-se ciente da gravidade da tarefa que tinha pela frente, da responsabilidade de não decepcionar.
Mas Dirceu começou a falhar a partir daquele dia. Atuou com autoritarismo na Casa Civil, batendo duro em aliados e adversários do governo. Queimou pontes que lhe fizeram falta no plenário da Câmara. Simplesmente cortou relações com a imprensa, decisão quebrada esporadicamente, o que lhe rendia cada vez mais a pecha de homem sombrio, de malvado do governo. Ele gostava do papel. Achava que se bastava. Que não seria derrotado.
Difícil dizer no calor da crise política se a cassação foi a punição justa para Dirceu. Sofrerá um banimento de 10 anos da vida pública. Politicamente, ele a mereceu. Escolheu a arena política e colheu o que plantou. A bengalada soou como uma irônica vingança pela frase em que afirmou que tucanos deveriam apanhar nas urnas e nas ruas, dita na época em que o governador Mário Covas foi agredido em praça pública em São Paulo.
A "cassação sem provas", decisão que Dirceu defendeu contra o deputado federal Ricardo Fiuza em 1994, voltou-se contra ele. O processo de Fiuza acabou arquivado. Mas as palavras de Dirceu à época, que hoje ele diz terem sido um dos seus grandes erros, foram usadas como justificativa para cassá-lo.
Uma análise jurídica rigorosa indica que faltaram as provas materiais para lhe tirar o mandato, apesar de fartas evidências de ligação com os atos da dupla Marcos Valério e Delúbio Soares. Suas idas à Justiça, feitas com competência advocatícia, foram boas lições da importância do respeito aos direitos individuais e ao devido processo legal.
Difícil encerrar um comentário sobre alguém tão notável, para o bem e para o mal. É triste o que aconteceu com Dirceu, mas mais triste é o que aconteceu com o PT.
Com toda a autoridade que possuía no Partido dos Trabalhadores, ele tinha a responsabilidade maior por zelar pela decência moral e ética do mais importante partido de esquerda da história do país. Ele falhou. Por mais que diga que estava sobrecarregado na Casa Civil, cuidando do governo, ele era o presidente de fato do PT --José Genoino nunca lhe fez sombra.
Dirceu não podia ter errado tanto quanto errou. A moderação econômica e política que o PT abraçou para chegar ao poder foi uma decisão acertada. Dirceu entendeu essa necessidade antes de Lula, que lhe deu apoio, apesar da relação distante e nada amistosa. Mas Dirceu errou na execução do plano. Dirceu errou porque tinha qualidades para ter sido muito melhor do que foi. E, sobretudo, para evitar o que aconteceu com o PT, partido que não precisava de Marcos Valério e, como o próprio Dirceu disse, tem, sim, mais créditos do que débitos na conta de serviços prestados ao país.