Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 04, 2005

A nova partilha do poder no Rio

O GLOBO

SILVIO FERRAZ

Joca, o novo líder do narcotráfico da Rocinha, baixou seu primeiro Ato Institucional. Reza o documento que nem ele nem seus asseclas darão guarida a ladrão algum que cometer seus crimes no perímetro que se estende do Barra Shopping ao Humaitá. Como revela a coluna do jornalista Ancelmo Góis e ele próprio comenta: "Feita a partilha, caberá à Rosinha Matheus tomar conta do resto da cidade." Joca já mostrou às polícias e a seus próprios seguidores sua nova maneira de agir: permitiu que três ladrões de uma loja fossem capturados pelos agentes da lei. Se o ato institucional é para valer, como eram os da triste e hedionda fase da ditadura, a quem pagar os impostos? — perguntam-se os contribuintes desse novo território criado na cidade do Rio de Janeiro. Quem garante que o bandido não decidirá expandir suas benesses no momento em que a população comemora o Natal com magros perus ou galinhonas engordadas na base do hormônio? Às vésperas do fim do ano instala-se o dilema na cabeça dos que pagam carnê do IPTU, taxas de IPVA, do Corpo de Bombeiros, ICMS embutido nos preços e nas cobranças das empresas que prestam serviço. Não seria mais indicado pagá-los ao que lhes garante segurança, ao menos?

Uma senhora comentou aliviada no supermercado: —- Ainda bem que aqui na Gávea estamos na nova "Zona de Proteção". Sim, porque as Áreas de Preservação Ambiental do prefeito Cesar Maia foram superadas com a "Zona de Proteção" do bandido Joca. Nos idos dos anos 80 sucedeu o mesmo na Colômbia, quando Pablo Escobar se proclamou rei. Gabriel Garcia Márquez, em seu livro "Notícia de um seqüestro", relata o clima de admiração devotado ao narcotraficante-mor pela população. Era coisa de moda, identificava o Nobel. "Os bandidos gozavam de uma completa impunidade por onde passavam, e inclusive de um certo prestígio popular pelas obras sociais que construíam ou mantinham." Assinala ainda que industriais, políticos, comerciantes, jornalistas e até simples mortais assistiam com complacência às farras de Escobar.

O que era moda, no entanto, transformou-se em poder paralelo e, em breve, deixaria de ser filantropia por amor aos conterrâneos menos afortunados. E o terror, acompanhado de seqüestros e crimes, instalou-se por longa década. Aqui no Rio o processo não é muito diferente. Mas, de qualquer forma, mata uma quantidade imensa de cidadãos que nada têm a ver com a incompetência das autoridades, digo, das pseudo-autoridades. O sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares revela em suas pesquisas o tamanho do crime: "O Brasil perde 120 mil vidas por ano somando as mortes em assaltos e homicídios, atropelamentos, afogamentos e outros acidentes. Isso é duas vezes o número de mortos na explosão atômica de Hiroshima. Se forem alinhados os 120 mil cadáveres, o cortejo fúnebre terá cerca de 200 quilômetros."

O brasileiro cansado, que acorda às cinco e vai dormir à meia-noite com seu sono entrecortado por temores, simplesmente não pode ouvir proclamações sobre a partilha da cidade que julga ser sua. O Instituto de Estudos da Religião, entidade que abriga o Viva Rio, concluiu em estudo que a violência, só no Rio, gera prejuízos da ordem de 1 bilhão de reais ao ano. E foi além: foram cometidos, há uma década, época da pesquisa, 5.261 assassinatos — ou seja, um a cada hora e meia. Esta intensidade só fez aumentar desde então. O estudo aponta que, considerando a faixa etária das vítimas e a expectativa de vida — mais da metade entre 15 e 29 anos — foram ceifados pela violência 148.902 anos de vida desses jovens prematuramente.

Voltemos aos impostos que não fazem senão subir. Um dado que poderia servir de medida da incompetência dos governos —- em todos os níveis. A socióloga Julita Lemgruber, que já dirigiu o sistema carcerário no Rio, para seu horror, conta-nos que a Rand Corporation, uma séria entidade de estudos americana conhecida por seu conservadorismo, concluiu que 1 milhão de dólares gastos com presos e prisões impedem 65 crimes por ano, na melhor das hipóteses. A mesma quantia aplicada na rede de ensino do segundo grau evitaria 258 crimes por ano.

As incompetências das polícias e do Judiciário se encontram provadas no Censo de 1995. "Existem 45 mil presos no Brasil condenados por crimes sem violência. Desses, 16% cumprem pena por furto. Estes golpistas, batedores de carteira, não deveriam estar cumprindo penas em presídios, verdadeiras escolas de graduação do crime. Saem todos piores do que entraram. Uma vez encontrei uma mulher cumprindo pena de dois anos atrás das grades por ter roubado um pacote de fraldas. Em outro presídio, um homem cumprindo a mesma pena por ter roubado um galo de briga. O juiz entendeu que, como dois amigos assistiram ao furto, houve formação de quadrilha e aumentou a pena", recorda ainda a socióloga.

No Rio temos dois candidatos à presidência: Garotinho e Cesar Maia. O que têm a dizer diante de Joca que — frise-se — não cobra impostos? E a Dona Rosinha, que nunca tem a dizer nada, porque não volta a Campos, de onde, aliás, nunca deveria ter saído?

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