O GLOBO
Uma das questões mais perturbadoras do atual cenário político é qual será a reação do eleitorado em 2006 diante da crise em que o país está mergulhado, com perspectivas de uma continuação pelo ano eleitoral adentro, quando se radicalizam as posições. Há o temor entre os políticos de que ganhe corpo um movimento incipiente a favor do voto nulo de protesto. E há quem considere que a nossa Operação Mãos Limpas ocorrerá com a renovação radical do cenário político nas eleições do próximo ano. O presidente do PPS, deputado Roberto Freire, por exemplo, acha que o sentimento difuso de repulsa que domina a sociedade diante do quadro de corrupção que vai sendo desvendado pelas CPIs será organizado naturalmente nas próximas eleições.
Por isso, ele não acredita que a polarização entre PT e PSDB, dada como inevitável, se concretize na campanha presidencial de 2006: "PT e PSDB são dois lados da mesma moeda", analisa Freire. Ele considera que a política econômica em vigor há três mandatos presidenciais é que impede o PSDB de fazer uma oposição realmente vigorosa ao PT.
Como considera que esse é o cerne dos problemas que o país vive, acha que o eleitorado vai rejeitar essa continuidade: "Não acho que a repetição da disputa de 2002, entre Serra e Lula, seja a solução dos problemas que a sociedade brasileira busca", diz Freire. Ele acha que se tivéssemos uma legislação eleitoral mais flexível, já teria ocorrido uma grande conjugação de esforços políticos para a formação de um novo partido nacional que representasse com mais propriedade os anseios de mudança da sociedade.
Freire acha que as eleições reorganizarão as forças políticas, na impossibilidade de uma reorganização partidária como a que está acontecendo em Israel, onde, a poucos meses da eleição, um novo partido político está sendo criado por líderes como o premiê Ariel Sharon, que deixou o Likud para formar um partido que ficará ao centro do espectro político do país, e já é considerado o favorito.
Entender as mudanças na sociedade civil e adaptar-se às novas condições, aliás, é a tarefa em que muitos grupos estão empenhados. Recentemente a Comunitas, uma ONG dedicada ao fortalecimento da sociedade civil e baseada nos programas da Comunidade Solidária, da ex-primeira-dama e socióloga Ruth Cardoso, realizou seminários no Rio e em São Paulo para discutir, entre outras coisas, "a crise e a reinvenção da política".
A preocupação é o descompasso "entre as realidades emergentes na sociedade brasileira nas últimas duas décadas e os velhos padrões de governança, participação política e ação social ainda predominantes". Na base da discussão, está a crise de legitimidade das instituições políticas, e como enfrentar a desarticulação entre as formas emergentes de participação dos cidadãos e o sistema político.
Esse descompasso entre os anseios da sociedade e a representação política é a tônica no mundo globalizado, aqui agravado pelos casos de corrupção num sistema que ainda não tem meios para punir os culpados rápida e eficientemente, sem que as instituições fiquem ameaçadas. Como aconteceu recentemente no Canadá, onde o governo do primeiro-ministro Paul Martin foi derrotado com um voto de desconfiança, devido a um escândalo nas eleições de 2004.
Os três partidos da oposição canadense se uniram contra o Partido Liberal, que assumiu o poder apenas um ano e meio atrás mas não conseguiu superar o escândalo desencadeado pelo governo liberal anterior. Uma ampla pesquisa de acadêmicos de diversas universidades do Canadá, com o sugestivo título "A psicologia política das reações de eleitores a um escândalo de corrupção", analisou as repercussões desse escândalo de desvio de um programa de publicidade de 250 milhões de dólares, poucos meses antes da eleição nacional.
A pesquisa mostra que a taxa maior de rejeição aos liberais veio daqueles que o trabalho chama de cínicos, que acham que política é um jogo sujo e os políticos não valem nada. Aqui no Brasil, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), realizada com oito mil jovens de vários segmentos do Brasil inteiro, denominada "Juventude Brasileira e democracia: participação, esferas e políticas públicas", revela uma juventude que sabe da importância da política, mas descrê dos políticos que a encarnam.
Provocados, em grupos de diálogo, a mandar recado para as autoridades públicas, os entrevistados enviaram respostas num tom contundente: "Mais dignidade, mais honestidade, maior consciência, atenção às demandas dos jovens — por emprego e educação — e do povo, renovação das formas de fazer política". Outra pesquisa, esta do Ibope sobre as instituições brasileiras, mostra o Senado, a Câmara dos Deputados, os partidos políticos e os políticos nos últimos lugares na confiança dos cidadãos.
O sociólogo argentino Natálio Botana, em artigo recente a propósito da recente eleição na Argentina, afirma que a conexão entre ofertas eleitorais e as necessidades humanas está ferida por um sentimento de distância. Segundo sua análise, esta atitude pode ser sinal de normalidade, "já que as eleições jamais deveriam representar um combate intenso de tudo ou nada entre ideologias excludentes" mas, ao mesmo tempo, essa disposição de ânimo "pode evocar um estado latente de indiferença e resignação".
Botana classifica de labirintos os caminhos escolhidos pela política tradicional, que seriam "propícios à astúcia do poder respaldada pelos especialistas, mas não para a castigada razão prática da cidadania". E conclui, irônico: "Por incrível que pareça, para servir à cidadania é que se estabeleceu a República". Como se vê, a crise de legitimidade das instituições políticas é um fenômeno global, que ameaça o próprio processo democrático.