Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 03, 2005

Merval Pereira Repensando as punições

O GLOBO

Não é possível afirmar se o ex-deputado José Dirceu continuará ou não tendo força no jogo político brasileiro, mas sua luta de quatro meses para tentar escapar da perda do mandato parlamentar está gerando frutos no Congresso, no que se refere aos processos internos de punição. A obstinação com que tentou manter-se na cena política não o torna um injustiçado, como se descreveu na entrevista coletiva de quinta-feira, já na qualidade de ex-parlamentar. E a obstinação apenas não será suficiente para dar-lhe destaque na dinâmica política, se não assumir algum papel importante na organização do PT. O livro que pretende lançar o mais rápido possível, tendo o escritor Fernando Morais como ghost-writer, será um fracasso de público se não contiver revelações que justifiquem sua edição.

Com revelações, o livro poderia até mesmo marcar o recomeço da vida política de Dirceu. Mas dificilmente ele fará revelações que botem em risco o grupo político ao qual está historicamente ligado, mesmo que revele a poucos íntimos a inconformidade com a atitude pouco ativa do presidente Lula a seu favor.

As conversas sobre a extinção do Conselho de Ética da Câmara, que seria substituído pela Comissão de Constituição e Justiça, estão em andamento, com o apoio de ministros do Supremo, mas nada se faria nessa legislatura, evidentemente. Os 13 deputados que estão na lista de cassação pelo mensalão, e mais outros que eventualmente surgirem nas investigações, continuarão sendo julgados pelo Conselho.

A tese de que a Comissão de Constituição e Justiça, por sua própria especialidade, não erraria tanto nos processos, tem muitos adeptos no Congresso, mas é rejeitada pelos integrantes do Conselho. O deputado Chico Alencar, do P-SOL, diz que o Conselho não errou tanto quanto ficou na percepção da opinião pública. Ele atribui à tenacidade dos advogados e à "densidade política especial" de Dirceu as atribulações do processo. E admite que, a partir de agora, o Conselho está tratando os demais processos com "cautela máxima", e um preciosismo jurídico estafante.

Chico Alencar revela que o que está sendo discutido entre os parlamentares é se "qualquer órgão da própria Câmara pode julgar seus membros". Esse ponto foi ressaltado pelo próprio Dirceu em sua despedida da Câmara, embora ele tenha exagerado ao afirmar que nenhum outro parlamento do mundo usava esse método. Além de existirem parlamentos com o mesmo sistema — México, Uruguai, Coréia do Sul — o acerto deste ou daquele sistema jurídico deve ser avaliado por sua eficácia na sociedade em que é usado.

No Brasil, ao que indicam as pesquisas, não há uma discordância da opinião pública quanto ao fato de a Câmara poder punir seus integrantes. E nem mesmo parece haver um clamor popular contra a cassação de Dirceu. Ao contrário, existe, sim, o temor de que o corporativismo impeça que as punições sejam aplicadas. Chico Alencar diz que há quem defenda que os órgãos do Congresso devam apenas instruir os processos por quebra de decoro e enviá-los ao Supremo para a decisão.

Existe ainda uma discussão mais delicada atualmente no Congresso: um grupo de deputados tem debatido a necessidade de, na definição de Alencar, "mitigar o tudo ou nada das punições do Conselho de Ética, no que diz respeito à suspensão dos direitos político-eleitorais". Está sendo considerada, além da cassação e suspensão dos direitos políticos por oito anos, "uma pena forte menor", na definição do deputado do P-SOL: aquele que tiver o mandato cassado não poderia disputar o próximo pleito.

"Tirar da vida partidária e da disputa eleitoral por oito, dez ou 12 anos (quem for cassado em início de mandato) alguém que feriu o decoro e a ética parlamentar pode ser uma demasia, uma injustiça", comenta Chico Alencar, que votou pela cassação de Dirceu. O próprio Dirceu considerou que a cassação foi como se tivessem tirado sua vida. A grande questão com que se defrontarão os deputados é a percepção da sociedade em relação a essas alterações. Já hoje, quando se fala de uma punição mais branda, como a advertência ou a suspensão, para alguém envolvido em quebra do decoro parlamentar, há a impressão generalizada na opinião pública de que os congressistas querem mesmo é aliviar a pena de seus companheiros.

Todas essas mudanças seriam introduzidas em uma eventual reforma política futura, e teriam necessariamente de ser debatidas dentro de um quadro geral de mudanças que desse à sociedade a sensação de que estaríamos evoluindo na nossa organização política. Regras rígidas para mudanças partidárias, por exemplo, seriam essenciais.

Também a confirmação das cláusulas de barreira que atualmente estão previstas na Constituição, com a exigência mínima de 5% dos votos nacionais e 2% em pelo menos nove Estados para que um partido tenha representação no Congresso. Com isso, ficaria muito reduzida a possibilidade de manobras fisiológicas, como as patrocinadas pelo então chefe da Casa Civil, José Dirceu — e que levaram à sua cassação — alterarem o equilíbrio político da Câmara.

Chico Alencar lembra que "na única autocrítica que fez, Zé Dirceu disse tudo (ato falho?): 'só me arrependo de não termos feito a reforma política no começo do governo'". Segundo Alencar, não ter feito a reforma política permitiu que "o sistema de barganha, de grana e cargos em troca de apoio" continuasse. "A base fisiológica, que o governo constituiu é especialmente sequiosa por isso, o 'pragmatismo' de Zé Dirceu e cia. aceitou essa governabilidade corrompida e deu no que deu".

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