Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Merval Pereira Dois tempos

O GLOBO

O presidente Lula sentiu o golpe. Ou melhor, os golpes que vieram ao mesmo tempo, misturando o tempo político com o econômico: a forte queda do PIB no terceiro trimestre e a cassação do mandato do antigo "capitão" de seu time. Há muito tempo o presidente não revelava na face toda sua angústia como na noite de quarta-feira, em Curitiba, quando perguntou que país agüentaria uma crise política como a que vivemos há cerca de seis meses, sem que a sua economia fosse abalada.

Mais uma vez a áspera realidade vem obrigar Lula a sair do seu mundo imaginário e a encarar as complexas questões da política brasileira, que não são triviais como parecem freqüentemente em seus improvisos, e como pareciam quando comandava as bravatas do PT oposicionista.

É impressionante como os petistas estão pagando, uma a uma, pelas posições radicalizadas que assumiram nos últimos 25 anos. Desde o moralismo exacerbado, que levou Brizola a apelidar o PT de "UDN de macacão", até a solução fácil para todos os problemas pela "vontade política", que transformaria em ouro tudo o que o PT tocasse.

O todo-poderoso José Dirceu, que cunhou a frase: "Este é um governo que não rouba nem deixa roubar", tem o mandato cassado por comandar um amplo esquema de corrupção política dentro da Câmara em benefício do governo. Ninguém é capaz de acusar Dirceu de corrupto, como ele se defendeu na tribuna da Câmara, mas sim de corruptor.

Até mesmo a atuação do Supremo Tribunal Federal, que lhe deu acolhida em vários recursos na sua luta para escapar do processo de cassação, já havia sido criticada por Dirceu em seus tempos de guerrilheiro oposicionista, como se viu nas declarações relembradas pelo líder do PSDB, deputado Alberto Goldman.

A falta de provas que ele tanto alega para classificar sua cassação como "um linchamento político" — com o apoio público do presidente Lula — não foi argumento suficiente quando o Supremo absolveu o ex-presidente Fernando Collor. Dirceu indignou-se com a decisão, e disse textualmente que não eram necessárias provas cabais, pois todos sabiam que Collor era corrupto. Exatamente o que alegaram com sucesso sobre sua atuação no comando do mensalão.

O presidente que até poucos dias se vangloriava de que a crise política não afetara a economia, agora culpa a política pelos maus resultados do terceiro trimestre. Números que apenas no dia anterior, com a divulgação do Pnad, considerava excelentes, como nunca se vira nos últimos 20 anos. O prometido "milagre do crescimento" não aconteceu, e nem acontecerá tão cedo num governo que é ambíguo com relação ao rumo a seguir.

Ao mesmo tempo em que promete que não abrirá mão do equilíbrio fiscal no ano eleitoral, estimula a discussão sobre os gastos correntes do governo, que para a ministra Dilma Rousseff "é vida", e para o assessor especial Marco Aurélio Garcia não podem ser cortados. O fato é que o governo entra em seu último ano com uma média de crescimento da economia semelhante à dos governos anteriores, que tanto criticava. Com o agravante de que estamos passando por um período de abastança internacional sem que crises globalizadas prejudiquem nossa economia.

Houvesse no governo posições mais harmônicas sobre a política econômica, certamente o resultado seria bem diferente. É o chamado "custo PT" cobrando seu pedágio. De um lado, a política macroeconômica tem que ser mais ortodoxa para sinalizar a seriedade da escolha. Por outro, o crescimento dos gastos públicos prejudica o equilíbrio fiscal.

A cassação de José Dirceu teve um efeito avassalador para a imagem do governo. Trouxe à tona novamente toda a crise política que se iniciou com as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, como a repisar as culpas do próprio presidente Lula nos episódios. Novas cassações se seguirão à de Dirceu, dissipando-se do cenário a possibilidade de uma pizza que livrasse os petistas do castigo final. Depois de cassar Dirceu, por que não cassar João Paulo Cunha ou Professor Luizinho?

Mas os processos entrarão por 2006 adentro, ano em que Lula terá que reorganizar suas forças políticas para tentar a reeleição. Não poderá contar com a maior parte do "núcleo duro" que coordenou a campanha e o assessorou nos primeiros meses no Palácio do Planalto. Com exceção do secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, estão todos avariados politicamente, atingidos em graus variados pelas denúncias.

José Dirceu, o coordenador político, está cassado; o publicitário Duda Mendonça foi flagrado recebendo pelo valerioduto no exterior; o ex-presidente do PT José Genoino curte o ostracismo político; o ex-ministro Luiz Gushiken está recolhido ao Núcleo de Assuntos Estratégicos tentando se defender de um provável indiciamento pela CPI dos Correios.

E o ministro Antonio Palocci, o último dos sobreviventes em atividade política de peso no governo, vive sob a dupla ameaça que vem do passado em Ribeirão Preto e o presente econômico sendo questionado, principalmente por seus aliados.

Para sorte do equilíbrio fiscal, parece não haver tempo para uma mudança de rumos na economia, nem disposição para tal do presidente Lula. Mesmo porque se decidisse enfrentar a campanha eleitoral com uma postura populista — coisa que reiteradamente recusa — o presidente Lula quase certamente provocaria uma crise econômica que tiraria de vez suas chances de se reeleger.

A pressão por gastos provocará, no entanto, momentos de tensão, a começar pela definição do salário-mínimo em ano eleitoral, com repercussões no déficit da Previdência mas também no eleitorado de baixa renda, onde hoje se concentra a força de Lula.



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