A lâmina, fria, desceu. Caiu no cesto, ensangüentada, a cabeça do cidadão José Robespierre Dirceu. Como na Revolução Francesa, terminou ali o período do terror. Como Maximilien Robespierre, Dirceu encarnava a idéia de que, por intermédio do poder, levado aos seus limites, era possível transmudar a sociedade e transformar a própria natureza humana. Robespierre, seguindo as idéias de Rousseau, entendia que os homens nasciam puros, o que os desvirtuava eram as amarras impostas pela sociedade. Sua meta, portanto, era a de implodir todas as crenças e todos os valores da sociedade para que os humanos voltassem ao seu estado natural de felicidade. Não mediu esforços para tanto. Usou e abusou do poder, voltou-se contra os seus próprios aliados, executou milhares de pessoas, rompeu com todas as convenções, até o ponto em que a própria sociedade, nauseada e aterrorizada, optou por enviar ele próprio à guilhotina.
José Dirceu, no poder, também não conhecia limites. Ele também almejava revolucionar a sociedade e para atingir os seus fins não hesitou em romper com todos os padrões éticos e com todas as regras de conduta da política democrática. Seu fim era previsível. A sociedade tem os seus freios e contrapesos. Cedo ou tarde, era esperada a sua reação.
José Dirceu julga-se um injustiçado. Alega que a sua execução política não se deu em razão do que fez, mas, sim, pelo que ele representava. Segundo ele, o seu glorioso passado de luta revolucionária, a firmeza de suas crenças, a determinação com que as defendia, tudo isso contribuiu para criar em torno de si uma aura de antipatia e arrogância. Os políticos convencionais, em sua ambivalência e flexibilidade, não toleram os ideologicamente convictos. Talvez se sintam moralmente inferiores e essa suposta condição gera, naturalmente, ressentimentos.
Será mesmo assim?
Em primeiro lugar, é preciso contextualizar a "épica biografia" que José Dirceu arvora para si. À diferença de outros mártires da ditadura, que, certos ou errados, arriscaram a sua vida pelas causas que defendiam, o heróico Dirceu pouco sofreu. Na condição de líder estudantil, foi preso em 1968, não consta que tenha sido torturado, e, já no ano seguinte, estava a salvo, em Cuba, treinando para ser guerrilheiro. Alguns anos depois, em 1975, voltou clandestinamente ao Brasil. Em vez de aplicar o que aprendeu, optou por uma vida pacata, no interior do Paraná, onde, com nome falso, se casou, teve filhos e se dedicou destemidamente ao comércio varejista. Foi somente em 1979, resguardado pela anistia, que o nosso herói se encorajou a voltar à luta política, reassumindo o seu nome de batismo, abandonando a família e participando da formação do Partido dos Trabalhadores (PT). Este é o resumo de seu glorioso passado de luta revolucionária.
Quanto à firmeza e determinação com que ele defendia as suas convicções, ninguém há de duvidar de sua palavra.
Como um dedicado e coerente marxista, Dirceu nunca acreditou nas virtudes e excelências da "democracia burguesa". A julgar pelos seus atos como ministro, o regime democrático, para ele, não era um fim em si mesmo, mas sim um transitório instrumento na luta pelo poder.
Foi sob a sua égide que o corpo do Estado foi esquartejado e sua carne, repartida entre os companheiros do partido. Já tão maltratado pelo secular nepotismo, o Estado brasileiro passou a ser flagelado pela prática do "nepetismo", ou seja, a ocupação dos altos cargos pelos partidários do PT. O mérito foi trocado pela convicção; a competência, pela militância; o diploma de graduação, pela carteirinha de filiação.
José Dirceu se arvora em administrador eficiente. A prática não demonstra isso. Como "gerentão" do governo - prerrogativa que lhe foi atribuída pelo presidente Lula -, ele simplesmente paralisou a máquina administrativa. Os petistas, alçados aos cargos de comando, demonstraram que de organização, na verdade, só entendiam mesmo da de passeatas.
Mas o determinado José Dirceu não foi cassado porque desmantelou a administração pública. Esse foi o seu pecado menor. Ele foi banido pela esbórnia que promoveu na ordem democrática.
O Parlamento, graças à sua atuação, foi rebaixado à condição de prostíbulo. Convicções políticas foram mercadejadas em troca de michês. Se o famigerado "mensalão" se dava, ou não, com periodicidade mensal, tanto faz. O fato é que foi indiscutivelmente comprovada a transferência de gigantescas quantias de dinheiro do PT para os partidos da base aliada. E o arquiteto e gerente deste imenso lupanar todo mundo sabe quem é.
José Dirceu tem razão num único ponto: quando afirma que foi cassado por aquilo que ele representa. O que ele representa é a quase total desmoralização, perante a opinião pública, da política como ofício, do Parlamento como instituição e da democracia como regime.
Muito tempo será necessário para juntar e recompor os cacos a que Dirceu reduziu as nossas instituições.
Vá embora, José Dirceu. Ninguém haverá de prantear no seu túmulo. Sua falta, com certeza, não faz falta.