O Estado de S. Paulo - 03/03/2011
Muamar Kadafi foi muito mais longe que Hosni Mubarak em seus pronunciamentos desesperados, em meio à revolução. Ele se dirigiu aos líbios como faria uma potência ocupante descontrolada, ameaçando emitir uma ordem de extermínio geral. A queda dramática do tirano da Líbia tem importância geopolítica incomparavelmente menor que a do regime egípcio. Contudo, tem um inigualável cortejo de significados simbólicos.
O fim de Kadafi assinala a segunda, e definitiva, morte do nasserismo. "A revolução é o meio pelo qual a nação árabe pode libertar-se de seus grilhões." A Carta Nacional divulgada por Gamal Abdel Nasser em 1962 definia a doutrina do pan-arabismo, que deveria destruir as fronteiras interestatais criadas pelas potências europeias e propiciar a "restauração da ordem natural de uma única nação". O Egito de Nasser figuraria, nesse percurso, como uma entidade transitória: o instrumento para a edificação da "nação árabe". O jovem Kadafi formou-se na academia militar nos anos áureos do nasserismo e liderou o golpe antimonárquico de 1969 para inscrever a Líbia na moldura da revolução anunciada pelo Egito. A humilhação árabe na Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi o estampido para o levante dos oficiais líbios do grupo de Kadafi.
Nasser morreu em 1970, mas o nasserismo prosseguiu, sob Anuar Sadat, ainda por alguns anos e uma nova guerra árabe-israelense. A primeira morte do nasserismo se deu pela ruptura do Egito com a URSS e o subsequente tratado de paz com Israel. Então, em 1977, Kadafi enrolou-se nos farrapos da bandeira do pan-arabismo e lançou um ataque militar contra o povoado egípcio fronteiriço de Sallum, sofrendo uma contraofensiva devastadora. Na década seguinte, enquanto no Egito a herança doutrinária de Nasser se dissolvia num antissemitismo caricato, a Líbia de Kadafi, o "cachorro louco", proclamava guerra ao "imperialismo" e organizava atos de terror contra interesses ocidentais ao redor do mundo. Agora, quando o tirano desaba, fecha-se de vez o ciclo inaugurado pela revolução pan-arabista.
O fim de Kadafi assinala o ocaso do longo período em que os povos árabes foram ofuscados pela invocação do espectro do "inimigo externo". A ditadura nasserista no Egito, como as ditaduras baathistas implantadas na Síria, em 1963, e no Iraque, em 1968, reclamavam uma legitimidade derivada da luta contra o imperialismo ocidental e sua suposta cabeça de ponte no mundo árabe, o Estado de Israel. A supressão dos partidos de oposição, a repressão à dissidência interna, a interdição do debate político eram justificadas pelo imperativo da unidade árabe. No caso da Líbia, agentes de Kadafi perpetraram assassinatos de dezenas de "cães vadios", na expressão usada pelo tirano para designar dissidentes exilados, na Europa, nos EUA e mesmo na Arábia Saudita. A nova revolução árabe não segue estandartes antiocidentais. A sua consigna é a liberdade, são os direitos de cidadania, não a utopia geopolítica da "nação única".
O fim de Kadafi assinala a desmoralização das tiranias personalistas que derivam de sistemas de partido único e acabam por lhes tomar o lugar. O modelo do regime de partido-Estado ancora-se no conceito de que o partido dirigente coagula uma verdade histórica superior. Os partidos comunistas se exibiam como locomotivas do "trem da História", em marcha rumo à estação terminal do socialismo. No mundo árabe, os regimes de partido único apresentavam-se como condutores de uma caravana que avançava rumo ao oásis da unidade pan-árabe. Invariavelmente, o modelo evoluía para ditaduras pessoais: Joseph Stalin, Mao Tsé-tung, Kim Il-sung, Fidel Castro, Gamal Abdel Nasser, Hafez Al-Assad, Saddam Hussein. A Líbia de Kadafi não passou pelo estágio primário, organizando-se desde o início como uma tirania pessoal.
O golpe de 1969 substituiu a monarquia liberal do rei Ídris, baseada na rede de poder tribal da região da Cirenaica, por um "Estado de massas" (Jamahiriya) - isto é, de fato, por um Estado de comitês submetidos ao controle do tirano. Kadafi não ocupava nenhum cargo formal no governo líbio, mas enfeixava o poder de fato, concentrado no Conselho de Comando da Revolução, e subordinava as Forças Armadas a milícias especiais. A nação líbia, destituída de contrato constitucional operante, identificava-se à figura de Kadafi, o "Irmão Fraternal e Guia da Revolução".
Mais que qualquer ideologia, essa redução da nação à imagem de um condottieri atraiu a admiração de Fidel Castro e, mais tarde, de Hugo Chávez. Um ano e meio atrás, Lula dirigiu-se a Kadafi como "meu amigo, meu irmão, meu líder", saltando a fronteira que separa a cortesia protocolar da apologia repugnante. O cumprimento representou mais que uma esperteza instrumental, destinada à conquista de votos árabes e africanos para a pretensão brasileira a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Ela evidenciou, ao lado da conhecida inclinação do ex-presidente por cortejar ditadores, uma ponta de inveja pelo estatuto de um líder não embaraçado por qualquer limite institucional.
O fim de Kadafi joga mais um facho de luz sobre a facilidade com que o Ocidente imola posições de princípio no altar das conveniências geopolíticas circunstanciais. O tirano operou como elo de articulação logística de variados grupos terroristas, ordenou a explosão do voo da Pan Am em Lockerbie, financiou milícias de mercenários no Chade e no Sudão, ajudou a montar as máquinas genocidas de Idi Amin, em Uganda, e Mengistu Mariam, na Etiópia, treinou o sanguinário exército de Charles Taylor na Serra Leoa. Nada disso evitou uma ignóbil "reabilitação", negociada pela CIA em 2003, na moldura da "guerra ao terror", e conduzida por Washington, Londres e Roma. Há, mesmo pequena, uma chance de Kadafi se sentar no banco dos réus de um tribunal para crimes contra a humanidade. Ele teria histórias interessantes a contar.
Entrevista:O Estado inteligente
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