Trouxe de volta o festival de bandeiras americanas despertado pelos ataques de 11 de setembro. No momento mesmo em que as autoridades tratavam de ordenar o caos que a brutalidade terrorista provocava, acabaramse os estoques de bandeiras americanas. Fato que a imprensa brasileira interpretou, como não podia ser de outro modo, à brasileira. Seria um surto de nacionalismo.
Na época, eu de lá escrevi uma crônica argüindo que a bandeira era o único símbolo nacional dos Estados Unidos. Não tendo sido uma monarquia (como ocorreu na Europa), tido uma religião oficial (como foi o caso do Brasil) e não tendo sofrido a terrível experiência de ditaduras que seqüestram do povo seus símbolos nacionais; na América, era bandeira de listras e estrelas, e não a cruz de cristo, os leões, grifos, dragões, ou as suásticas, estrelas vermelhas, e a foice e o martelo que representavam o seu lado comunitário mais inclusivo — a sua visão e si como uma pessoa ou indivíduo coletivo. Como nós fazemos com os times de futebol, mantendo com eles uma lealdade que vai além da religião, do casamento e até da sexualidade, os americanos jamais trocaram de bandeira. A guerra civil apenas consolidou o pendão vencedor da “união” que, entre eles, é uma palavra forte, porque a vida cívica americana segue de baixo para cima — o local tendo uma autonomia que causa náusea em qualquer funcionário federal brasileiro. Daí o estranhamento com o sistema eleitoral americano de votação dupla e, ainda por cima, sem a boa centralização de um Supremo Tribunal Eleitoral.
Foi essa multidão de bandeiras americanas que me impressionou quando Barack Obama foi declarado vencedor.
No ritual da vitória, os seus eleitores tinham nas mãos as bandeirinhas nacionais, e não dísticos partidários, como ocorre nas eleições brasileiras. Entre nós, a política partidária ainda terá de aprender a curvar-se diante do poder nacional que pertence ao povo e ao país e deve ser o foco de todos.
Obama me lembra as idéias de um antigo ensaio escrito pelo sociólogo Robert Bellah, em que ele falava de uma “religião civil na América”. Um sistema de crenças no qual o cívico, e não apenas o político, faz com que os presidentes retomem o papel de pastor ou ministro, mostrando, como faz Obama, que o presidente é, sem dúvida, um escolhido, mas fica longe de ser um salvador da pátria. Mas eis que as bandeiras assinalam como o componente messiânico pode pipocar também pelo lado de lá. Os discursos medidos revelam um Obama disposto a controlar a dimensão carismática do papel de presidente.
A meu ver, ele continua a enfatizar muito mais a estrutura e a burocracia quando abandona a plataforma racial para definir-se, como afirmei numa outra crônica, de modo anti-romântico e universalista.
Como um americano que é, entre outras coisas, negro; e não como um negro-americano. Lembro, invocando uma lição do antropólogo Louis Dumont, que os universalistas diziam ser, primeiramente, seres humanos e casualmente franceses. Já os românticos e particularistas, definindose de modo inverso, afirmavam ser homens justamente porque eram, primeiramente, alemães...
A eleição de Obama é um evento magno num país que, no que diz respeito aos negros, colocou-se contra o seu credo cívico de igualdade e liberdade.
Obama, o novo comandanteemchefe, o novo Número Um, é membro do grupo que mais sofreu com a perversão racista, pois a segregação étnica que inferiorizava e roubava humanidade e cidadania ocorria justamente na sociedade que mais havia instituído a igualdade como um valor. Como diz Gunnar Myrdal, no livro “An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy”, um estudo clássico, infelizmente não traduzido e pouco conhecido no Brasil, o credo igualitário americano, atua em duas direções. De um lado, ele opera para suprimir o dogma da inferioridade racial; mas, do outro, ele é pervertidamente chamado à cena para romper com essa igualdade.
O “dogma da raça” somente surge com tanta força e consistência, acentua Myrdal, numa sociedade que leva realmente a sério o igualitarismo.
Não fosse a igualdade um credo firmemente estabelecido, não haveria necessidade de um racismo tão sério, explícito e consistente. Mas numa sociedade consistentemente igualitária, o racismo é o recurso ideológico paradoxalmente chamado a inferiorizar o negro na sua inserção na comunidade que se define como branca. O racismo seria uma perversão do igualitarismo e do credo democrático.
É por isso que Obama me trás de novo à cabeça uma já invocada equação entre eleição e alteridade. Pois eu não posso deixar de pensar naquela súcia de red-necks racistas que, aqui e ali, em Cambridge, Massachusetts; em Elizabeth City, North Carolina; e Madison, Wisconsin; na californiana Berkeley e na Notre Dame de Indiana, eu tive o desprazer de encontrar.
Este hesitou em cortar-me o cabelo; aquele queria me obrigar a dar cursos idiotas; um outro consideravame um híbrido ou mestiço impuro, perigoso e sexualmente carregado; a maioria não me acreditou capaz — porque não era inglês ou francês — de ter feito obra e ser recipiente de uma cátedra. Todos devem estar nessa América parida pela eleição de Obama, remoendo seus ressentimentos contra o sistema que eles herdaram e pensam que honram.
Entrevista:O Estado inteligente
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