Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 29, 2008

VEJA Carta ao Leitor


Trate-se dos vivos

Fotos: Tarcisio Mattos/ Tempo Editorial e Filipe Araujo/AE
Cenário de devastação
O repórter Igor Paulin, no interior de Santa Catarina: a história de um caminhoneiro cujo filho foi encontrado morto boiando na enchente. No detalhe, a inundação na cidade de Navegantes

As primeiras religiões nasceram como tentativa de domar a natureza. No alvorecer da história, os homens buscavam sobrepor-se a ela pelo pensamento mágico ou cultuando deuses que se encarregariam de apaziguar a água, os ventos, o fogo e a terra, fatores que determinavam a sorte das sociedades. Fernand Braudel, o grande historiador francês morto em 1985, atribui à súbita mudança climática o desaparecimento simultâneo em torno do ano 1200 a.C. das civilizações hitita, messênia e cretense, que dominavam o Mediterrâneo. A palavra "sobrenatural", aliás, embute em sua origem o confronto com inundações, secas, incêndios e avalanches.

O progresso tecnológico nos elevou à condição de espécie dominante no planeta, e boa parte da humanidade passou a dispor de um cotidiano menos exposto às catástrofes naturais. Esquecemos que vivemos à beira de rios que podem transbordar, de montanhas que podem deslizar sobre nosso teto, de solos que podem tremer e fender-se, arrasando cidades inteiras. Esquecemos não só por arrogância, mas também por um saudável bloqueio psicológico que nos permite, afinal de contas, viver, trabalhar e frutificar, sem ser atormentados dia após dia pela constatação de nossa fragilidade.

Vez por outra, no entanto, somos devolvidos à nossa dimensão insignificante diante da natureza. Foi o que ocorreu em Santa Catarina. Na semana passada, um dilúvio afetou um em cada quatro moradores de um dos estados mais prósperos do Brasil. Mais de uma centena de vidas foi ceifada e dezenas de milhares de pessoas viram sua casa ser destruída. Só em Blumenau, caíram do céu, em cinco dias, 300 bilhões de litros de água – o suficiente para abastecer a cidade de São Paulo por três meses. Igor Paulin, um dos repórteres de VEJA encarregados de cobrir a tragédia, relata histórias pungentes como a do caminhoneiro cujo filho foi encontrado morto boiando na enchente. A natureza não é mãe nem madrasta. Ela é simplesmente indiferente à nossa existência. Passado o pior momento, resta aos catarinenses, com a solidariedade dos demais brasileiros, ecoar a determinação do marquês de Pombal, logo após o terremoto que destruiu Lisboa em 1755: "Enterrem-se os mortos; trate-se dos vivos".

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