O GLOBO
Não se pode dizer que o Estado brasileiro tenha retrospecto elogiável na forma de tratar — talvez fosse melhor falar em maltratar — seus cidadãos menos favorecidos.
A herança da escravidão foi aqui mal administrada desde o início. O trabalho escravo foi abolido com incompetência — para não dizer indiferença — extraordinária.
De uma hora para outra, os escravos foram simultaneamente libertados e abandonados. Analfabetos e sem teto ou bens de qualquer natureza, a quase totalidade da população negra do país saiu das senzalas para a miséria absoluta. E os brancos ainda chamaram a lei de áurea.
Só dois séculos depois o Estado e as classes conhecidas como mais favorecidas começaram a despertar para a necessidade de criar formas de compensação. Não para a enorme maioria, mas, pelo menos, para aqueles que vencem as barreiras do atraso e chegam às portas da universidade. E começou a guerra das quotas, ainda longe do fim.
Na batalha mais recente, a Câmara acaba de aprovar um substitutivo que cria quotas nas universidades e escolas técnicas da União. O projeto tem características novas: metade dos beneficiados deverá ter cursado o ensino médio em escolas públicas e, desses, metade terá de ser de famílias de baixa renda. A outra metade do total será de pretos e pardos, em porcentagem proporcional à composição étnica da população do estado.
São novidades complicadas, o que ameaça a eficácia da inovação, e isso é grave defeito. Não é possível evitar que problemas sejam complexos, mas isso não determina que as soluções também sejam.
Outro exemplo: o projeto acaba com o vestibular para os quotistas, que passam a ser selecionados com base nas notas obtidas no ensino médio.
Seria razoável, se o ensino médio tivesse um nível de qualidade mais ou menos homogêneo no país inteiro, o que simplesmente não existe.
Outro exemplo: extingue-se o vestibular nas universidades federais para alunos de escolas públicas. Isso significa ignorar a enorme diferença de qualidade nos níveis da educação secundária oficial pelo país afora. Uma coisa é óbvia: se a mesma complexa solução vale para Rondônia e para São Paulo, num dos dois estados não será a mais adequada. Ficará bem longe disso.
Enfim, faltam ao projeto homogeneidade e, principalmente, simplicidade.
E subirá agora ao Senado. Claro, pode ser melhorado — mas não existe qualquer garantia de que os senadores são mais espertos que os deputados, ou menos auto-suficientes.
Bom, pelo menos, há menos senadores do que deputados, o que sempre oferece uma modesta esperança de menos propostas insensatas.
Entrevista:O Estado inteligente
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