EM PAÍSES QUE FAZEM SENTIDO, basta uma única evidência material indesmentível para abreviar o processo judicial e apressar a condenação do autor da delinqüência. Como o Brasil não faz, 35 mil provas contundentes do crime praticado na primavera de 2006 pelo governador paraibano Cássio Cunha Lima, candidato à reeleição pelo PSDB, foram insuficientes para anabolizar o andamento do caso.
Só neste mês, mais de dois anos depois da consumação do delito, o Tribunal Superior Eleitoral anunciou a merecidíssima cassação do mandato conquistado com a ajuda dos 35 mil cheques emitidos por um programa assistencial criado por Cunha Lima e entregues na casa dos beneficiados junto com os cumprimentos do responsável pelo donativo ilegal (e o aviso de que o favor deveria ser retribuído nas urnas). "Não entendo por que desta vez a Justiça agiu com tanta pressa", espantou-se o senador Sérgio Guerra, presidente do PSDB.
Em países que fazem sentido, o parlamentar pernambucano seria remetido ao hospício mais próximo ou, na hipótese mais clemente, a uma clínica especializada na recuperação de cínicos. Como o Brasil não faz, Guerra falou pela nação. Pelos padrões nativos, um pai da pátria só é julgado (e, em 899 a cada 900 casos, absolvido) depois de, no mínimo, cinco anos seja qual for a lei que tenha estuprado. Mesmo que seja a lei que trata de crimes contra a vida, comprova a saga lastimavelmente exemplar do pai de Cássio Cunha Lima.
Anistiado no começo dos anos 80, o ex-militante estudantil Ronaldo Cunha Lima ressurgiu na paisagem política da Paraíba como um saudável contraponto para os donatários da capitania. Enquanto o jovem esquerdista se opunha à ditadura, os coronéis de paletó continuaram segurando as rédeas do poder, pessoalmente ou pelas mãos de afilhados obedientes. Poeta imortalizado na Academia Paraibana de Letras, repentista eventual, ainda moço se comparado a veteranos velhacos, elegeu-se prefeito de Campina Grande e virou governador em 1990. Como administrador, não foi diferente dos outros.
Como atirador, nunca houve algum pior, soube-se em 5 de novembro de 1993. Bravo com os ataques que lhe fazia o antecessor Tarcísio Buraty, o governador resolveu honrar o que há de pior nos usos e costumes da terra, e resolver a pendência a bala. Encorajado por algumas doses a mais, encerrou o expediente no meio da tarde, botou um revólver na cintura e saiu no encalço do desafeto. Encontrou-o num restaurante, aproximou-se e disparou duas vezes. Atingido pelos dois tiros, Burity não demorou a recuperar-se dos ferimentos.
Morreu 10 anos depois, vítima de doenças sem vínculos evidentes com o ataque promovido pelo pistoleiro trapalhão. Mas Cunha Lima havia atirado para matar, e ficara claramente configurada a tentativa de homicídio. Primeiro refugiado no Senado, depois na Câmara dos Deputados, o réu valeu-se do direito ao foro privilegiado para conseguir que o processo tramitasse em terrenos mais amistosos. Desde 1995 em repouso no Supremo Tribunal Federal, o caso estava a quatro dias do julgamento quando, em outubro de 2007, Ronaldo Cunha Lima renunciou ao mandato de deputado federal e se devolveu à Justiça comum.
Mais de 14 anos depois da tentativa de assassinato, estacionado na 1º instância, espera serenamente a prescrição do crime. "É um escárnio para com o Judiciário", indignou-se há um ano o ministro Joaquim Barbosa. Se não pôde evitar que o pai lhe enfiasse uma bola entre as pernas, o time da toga tem 30 mil motivos para neutralizar o drible desmoralizante ensaiado pelo filho, que bateu à porta do STF para livrar-se do castigo que lhe foi imposto por "abuso do poder econômico e político e prática de conduta vedada a agente público". (Traduzido para língua de gente, o palavrório em juridiquês cabe em três palavras: compra de votos.) Basta rejeitar a ação encaminhada pelo PSDB, destinada a pelo menos adiar a posse do senador José Maranhão, o candidato do PMDB derrotado em 2006.
Apesar da ordem de despejo, Cássio continua no gabinete, despachando pecados. O mais recente foi a concessão de aumentos salariais a milhares de servidores públicos. Transferida para o sucessor, a conta será bancada pelos paraibanos. Pai e filho estarão em casa, com tempo de sobra para planejar a próxima campanha. Isto é o Brasil.