A correspondência do maior escritor brasileiro ganha a primeira edição completa, permitindo uma nova avaliação de sua trajetória
Jerônimo Teixeira
Biblioteca Nacional |
BARDO ROMÂNTICO O jovem Machadinho: jornalista e dândi, com uma queda por certa atriz francesa |
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Nos anos 1860, Machado de Assis, ainda na casa dos 20, já conquistara certa fama. Contava com peças teatrais encenadas e era aclamado como "o bardo das Crisálidas", livro de poemas publicado em 1864. Também era um crítico respeitado – em 1868, José de Alencar consagraria Machado como "o primeiro crítico brasileiro" em uma carta aberta publicada no Correio Mercantil. No entanto, o moço que ganhava a vida como jornalista do Diário do Rio de Janeiro enquanto tentava cavar um emprego público estava ainda longe do escritor maior das letras brasileiras, cujo centenário de morte é lembrado neste ano. Machadinho – como o chamavam alguns amigos – ainda não havia publicado um só romance. O primeiro tomo da Correspondência de Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras/Fundação Biblioteca Nacional; 320 páginas; ainda sem preço definido), cobrindo de 1860 a 1869, oferece um panorama desse período fundamental na formação do escritor. Com coordenação do filósofo e diplomata Sergio Paulo Rouanet – membro da Academia Brasileira de Letras – e organização das pesquisadoras Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, o livro abre a primeira edição integral da correspondência de Machado, que se completará no ano que vem, com mais dois volumes. "O Machado dessas primeiras cartas é muito diferente da convenção. No lugar da figura ensimesmada de casaca preta, surge um boêmio namorador", diz Rouanet.
VEJA teve acesso antecipado e exclusivo à íntegra do livro. São noventa cartas, nas quais predomina a correspondência passiva – só 23 foram escritas por Machado. Os organizadores incluíram não só a correspondência privada, mas as cartas abertas publicadas na imprensa (ou até em livros, como a pernóstica carta-prefácio do advogado e poeta Caetano Filgueiras, na primeira edição de Crisálidas). Esses documentos – muitos deles inéditos ou raros – foram recuperados por Irene e Sílvia de vários arquivos, museus e instituições de pesquisa, principalmente do acervo da própria ABL e da Biblioteca Nacional. A organização do volume permite uma leitura nova desse material. Sob a diversidade de correspondentes e assuntos, há um enredo discernível, uma nítida evolução do protagonista: Machado começa como o jornalista dândi que freqüentava teatros e ao que tudo indica namorava atrizes (embora as cartas não permitam a identificação positiva de suas amadas) – para acabar com um emprego estável no Diário Oficial do Império e casado com a portuguesa Carolina Xavier de Novais (só se conservaram duas cartas de Machado para a noiva, uma delas incompleta). O aparato de notas produzido pelos organizadores auxilia a compreensão desse enredo, esclarecendo referências literárias e históricas e identificando os personagens citados nas cartas.
Museu Histórico Nacional |
AMOR E ESTABILIDADE: seu casamento com Machado, em 1869, abre uma nova fase na vida do escritor |
O jovem Machado tinha um grupo de amigos fiéis, quase todos poetas ou dramaturgos diletantes. "Eram jovens petulantes e talentosos. Mas só um deles era um gênio – Machado de Assis", diz Rouanet. Um espírito romântico exacerbado predominava no meio dessa turma: "Eu tenho sofrido, Machado, tenho sofrido como se pode sofrer na minha idade!", reclama o poeta e dramaturgo Luís Guimarães Jr. Há lugar para uma figura trágica entre os amigos de Machado: o escritor português Faustino Xavier de Novais, irmão mais velho de Carolina. Depressivo, Faustino vai progressivamente perdendo a razão, até a morte, em 1869. Ele é autor de uma carta aberta muito comentada pelos biógrafos de Machado – tudo porque faz uma referência à queda do escritor brasileiro por Mademoiselle Aimée, atriz francesa muito popular no Rio. A carta é transcrita pela primeira vez na íntegra no primeiro tomo da correspondência.
Nem tudo é literatura ou boemia: temas políticos, sociais, religiosos se fazem presentes. O jovem Machado lastima as más condições de trabalho dos operários navais, escreve ao bispo do Rio para acusar a corrupção do clero e pedir o fim das procissões, polemiza com um correspondente sobre a ilegitimidade do imperador Maximiliano, do México, e narra os acontecimentos da Guerra do Paraguai ao amigo Quintino Bocaiúva, que viajava pelos Estados Unidos. Sua simpatia pelas causas liberais é clara. Mas o escritor já começava a revelar certa reticência para com a ação política direta. Isso é aferível na tensa correspondência com o amigo Henrique César Muzzio, médico e político que instava o jornalista Machado de Assis a ser mais incisivo na defesa do Partido Liberal.
Nos próximos volumes da correspondência, teremos o salto do Machadinho de Crisálidas para o Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Uma carta de Capistrano de Abreu, de 1881 (leia trecho abaixo), dá uma prévia do pasmo que essa transformação causou aos contemporâneos. "O que é Brás Cubas?", pergunta o historiador, abismado com as inovações do romance. Quase 130 anos depois, ainda não se sabe a resposta.
Instituto Moreira Salles |
CIDADE CONQUISTADA O Rio de Janeiro no século XIX: Machado de Assis já granjeara fama antes de completar 30 anos |
O QUE É BRÁS CUBAS? "Dear sir, hoje às 7 horas da manhã, poucos momentos antes de tomar o trem de Rio Claro para Campinas, me foi entregue com a sua carta de 7 o exemplar de Brás Cubas que teve a bondade de me enviar. Li de Rio Claro a Campinas, e, preciso dizer-lhe? – a impressão foi deliciosa, e triste também, posso acrescentar. Sei que há uma intenção latente porém imanente em todos os devaneios, e não sei se conseguirei descobri-la. (...) O que é Brás Cubas em última análise? Romance? dissertação moral? desfastio humorístico? (...) Pretendo passar dois dias em Campinas, e aqui lerei o que me falta, que infelizmente não é tanto quanto desejaria."
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Fé confeitada
Biblioteca Nacional |
"Em vez de ensinar a religião pelo seu lado sublime, (...) é pelas cenas impróprias e improveitosas que (as procissões) a propagam. Os nossos ofícios e mais festividades estão longe de oferecer a majestade e a gravidade imponente do culto cristão. São festas de folga, enfeitadas e confeitadas, falando muito aos olhos e nada ao coração."