Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 08, 2008

J.R. Guzzo Um valor livre


"Os americanos mostraram que a igualdade
é um valor que se pratica livremente – e não
porque a lei diz que todos são iguais"

Aí está: os Estados Unidos têm um presidente negro. Neste estranho ano de 2008, em que aconteceu tanta coisa que nunca tinha acontecido antes, Barack Obama foi eleito – com sua cor, seu nome estrangeiro e seus 47 anos de idade, e contra mais ou menos tudo o que se poderia imaginar até bem pouco tempo atrás. A sensação que fica é: depois disso, o que mais estaria faltando? Era difícil que um homem como ele chegasse a senador. Que se tornasse um dia candidato à Presidência era impensável. Presidente dos Estados Unidos, então, fazia parte do impossível – e o impossível aconteceu. É certo que nos últimos meses, com a campanha eleitoral correndo a toda, uma vitória de Obama já não parecia ser algo assim tão fora de propósito; hoje em dia, aparentemente, quase todo mundo se acostuma com grande rapidez a qualquer tipo de novidade. Mas, por mais que a atenção tenha passado a se concentrar nos números das pesquisas e nas propostas de governo dos candidatos, nunca deu para fazer de conta que não estivesse em jogo, no fundo, uma idéia absolutamente extraordinária: a de que um negro pudesse ser eleito para a Presidência dos Estados Unidos da América. Era isso, feitas todas as contas, o que realmente pesava. Os americanos aceitariam ou não um presidente negro? Sim, aceitaram – e com uma das mais formidáveis maiorias já registradas numa eleição presidencial americana.

No dia seguinte à vitória de Obama, nenhuma das realidades atuais dos Estados Unidos, do resto do mundo ou dos seus quase 7 bilhões de habitantes tinha mudado em nada, e é pouco provável que alguma delas venha a mudar no futuro próximo. Mas o fato é que 4 de novembro de 2008 vai ficar marcado na história como o dia em que o princípio da igualdade entre os seres humanos deu um inédito passo para a frente – talvez o maior, do ponto de vista simbólico, jamais dado até hoje. O impacto das eleições, na verdade, vai muito além da fronteira americana; com a eleição de Obama, os Estados Unidos passam a ser o primeiro país do mundo, fora da África e uma parte do Caribe, a ter um presidente negro. Justo eles, os Estados Unidos – que apesar de todos os avanços feitos nas últimas décadas sempre foram vistos como a sede mundial do preconceito e da discriminação raciais, junto com a antiga África do Sul. Dá o que pensar.

Não há dúvida de que Obama deve sua vitória, em primeiro lugar, a si mesmo e às suas qualidades. É um orador de notável inspiração, um estrategista como não se vê há muito tempo, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar, um tático brilhante e, talvez mais do que tudo, um mestre na arte de fazer política apostando na soma, em vez de na divisão – e de convencer o eleitorado de que é capaz de prover, ao mesmo tempo, mudança e estabilidade. Cada vez mais gente fala dele como uma nova estrela da história política americana, um Kennedy ou Roosevelt do século XXI; é algo que só se verá mesmo a partir de sua posse, no dia 20 de janeiro, mas já faz quase cinqüenta anos que essas coisas não são ditas a respeito de ninguém. E no entanto, apesar de tudo, a chave das eleições nunca deixou de estar na questão racial.

A campanha foi feita num momento em que os Estados Unidos travam, há anos, duas guerras ao mesmo tempo. Vivem uma crise econômica de tamanho desconhecido pela atual geração. Empresas que são o símbolo mais notável da potência industrial americana, como a General Motors e a Ford, lutam hoje, simplesmente, para não ir à falência. O mês de outubro viu os investidores nas bolsas de valores através do mundo, a começar pelos Estados Unidos, perderem 6 trilhões de dólares, quase cinco vezes o PIB anual do Brasil. Todos esses dramas, é claro, foram discutidos até a exaustão dos candidatos e, possivelmente, dos eleitores. Mas ao longo de toda a caminhada, até a hora do voto, o ponto central continuou sendo a cor da pele de Obama. Foi sobre isso, afinal, que se decidiu.

A decisão foi dada. A lei, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, pode dar direitos iguais a todos, seja qual for a sua cor, e obrigar que tais direitos sejam cumpridos. Mas não pode obrigar ninguém a gostar de ninguém – muito menos obrigar que a maioria de brancos eleja um presidente negro. Se Barack Obama foi eleito, é porque os americanos enfim resolveram, na primeira vez em que tiveram de escolher entre dois candidatos de cor diferente, que raça não deve mais servir de veto numa eleição presidencial. Mostraram que a igualdade é um valor que se pratica livremente – e não porque a lei diz que todos são iguais.

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